Sérgio Machado: ‘O Brasil virou de cabeça para baixo’

Pela primeira vez na carreira de sucesso, cineasta baiano considera morar fora do país

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  • Ronaldo Jacobina

Publicado em 20 de setembro de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: foto/divulgação

Depois de seis meses trancado em seu apartamento em São Paulo, sozinho com os dois filhos, o cineasta baiano Sérgio Machado, resolveu passar uma temporada com as crianças em Paraty, no litoral do Rio de Janeiro. Ao longo desse período, o artista diz que tem, diuturnamente, dividido o tempo entre as tarefas domésticas, as atividades escolares das crianças, e a coordenação de uma equipe de 300 pessoas espalhadas pelo mundo, que trabalha no seu primeiro filme de animação, A Arca de Noé, inspirado na obra de Vinicius de Moraes. “Será o maior projeto de animação brasileiro”, diz.

Workaholic confesso, Machado está envolvido em diversos trabalhos ao mesmo tempo. Além do desenho animado, está finalizando o filme Anaíra, inspirado no livro O Adeus ao Comandante, de Milton Hatoum; uma minissérie sobre a vida do sociólogo Betinho para a Globoplay, além de outros projetos como a criação de novos roteiros.

Desencantado com os rumos da política cultural do país, o cineasta diz que pensa em deixar o Brasil e se estabelecer nos Estados Unidos, de onde recebeu convites. “Estão matando o audiovisual brasileiro”, diz.

Diretor do documentário Neojiba, ainda inédito e que foi selecionado na mostra in-Edit, Machado diz que tem muito orgulho de ter feito o filme. “Me emocionei muito quando vi pronto”, conta. De Paraty, entre um apelo e outro da filha de seis anos para passear, ele conversa com o CORREIO.

Como tem sido sua rotina em tempos de pandemia? Fiquei seis meses dentro de meu apartamento em São Paulo, com as crianças, uma de seis e outra de 15, que se revezam 15 dias comigo, 15 dias com a mãe. Tem sido um aprendizado, lavar, cozinhar, cuidar deles, acompanhar as atividades escolares remotamente, e trabalhar, tudo ao mesmo tempo. Nunca trabalhei tanto na vida (risos). Agora vim para Paraty e acho que vou ficar uma temporada trabalhando de forma remota por aqui.

No que você tem trabalhado tanto? Vários projetos que já estava tocando e outros novos. Estou coordenando remotamente uma equipe de quase 300 pessoas espalhadas por várias partes do mundo, trabalhando na animação A Arca de Noé, inspirada na obra de Vinicius de Moraes.  

Esse filme já era pra ter sido lançado. Porque o tempo de cinema é tão diferente do de outras linguagens? Em geral, as filmagens duram entre um e dois meses. No caso de animação, isso se estende por um ano ou mais, porque tem muita gente envolvida, muitos processos a serem desenvolvidos, são muitas fases.

O que a gente pode esperar desta produção? Esta será a maior animação já feita no Brasil e que só  esta sendo possível realizá-la porque já vendemos para vários países antecipadamente, estamos com equipes enormes, trabalhando remotamente de várias partes do mundo, inclusive na Índia, onde parte dele está sendo realizado.

Então, é uma produção cara? Cara para o Brasil, em torno de R$ 20 milhões, e nada para os padrões americanos e três vezes menos para os padrões europeus.

Esta é mais uma parceria com Walter Salles com quem você começou? Sim, com Waltinho e com a Gullane Filmes.

Qual a previsão de estreia? Estamos trabalhando para que aconteça no final de 2021.

Além da animação, você esta dirigindo um longa-metragem inspirado numa obra de Milton Hatoum.  Sim. Filmamos em sete semanas na Amazônia e agora estamos na fase de montagem. Essa etapa da montagem tem sido a grande dificuldade porque montar um filme remotamente é bem complicado, eu gosto de montar junto, sinto falta de estar perto das pessoas.

Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas nesta produção?  Como sempre, pouco recurso. Pra você ter uma ideia, começamos com uma equipe de 40 pessoas e acabamos com oito.

O filme é inspirado no livro O Adeus ao Comandante, de Hatoum. Este será o titulo?  Estamos trabalhando com o titulo provisório de Anaíra, a personagem principal da obra, uma mulher que é disputada por dois irmãos. Temos um time de grandes atores no elenco: Sophie Charlotte, Daniel Oliveira, Gabriel Leone, Rômulo Braga e por ai vai. Já fizemos o primeiro corte e agora vamos começar a circular, a mostrar as pessoas.

Tem previsão de lançamento?  Estamos planejando levar para os festivais, provavelmente de Cannes, Berlim e Veneza, para depois levar aos cinemas.

O documentário Neojiba – Música que Transforma, filmado na Bahia e na Europa, ainda sem data de estreia, foi um dos selecionados para o Festival in-Edit. Como foi essa experiência de contar essa história de um projeto que tem mudado a vida de tantos jovens?  Esse foi um projeto pequeno, com baixo orçamento, mas que me deu muito prazer de fazer, me deu muito orgulho. Quando vi o filme pronto me emocionei muito, porque é um projeto lindo, de transformação através da música. Sinto um orgulho enorme de ter feito e acho que as pessoas vão se emocionar como eu me emocionei.

Soube que, depois de Irmãos Freitas, está vindo mais uma série por ai.  Sim, sobre a vida do Herbert de Souza, o Betinho, uma encomenda da Globoplay. Era pra começar as filmagens agora em agosto, mas veio a  pandemia e tivemos que alterar o cronograma. Está prevista uma temporada com um grande elenco: Julio Andrade, Lázaro Ramos, Daniel Oliveira, Débora Nascimento, Nathalia Laje, Dani Suzuki e muitos outros grandes nomes.

Como você avalia a atual situação do audiovisual no Brasil?  Acho que nunca foi fácil, mas acredito que vivemos um dos piores momentos, o governo trata a cultura como inimiga, e o mais grave: este governo está matando a arte, a cultura em geral. Querem acabar com o audiovisual da periferia, da diversidade, enfim, vivemos o caos e o mais lamentável é que poucos sobreviverão. O governo quer acabar com a Cinemateca, quer controlar as postagens dos órgãos, os editais, ou seja, o passado está em perigo e o futuro também. Nunca imaginei viver isso nem nos meus piores pesadelos.

Você acredita que o cinema brasileiro está ameaçado?  Sim, muito. Acho que, com esta situação, somente os que já estão estabelecidos sobreviverão, as grandes produtoras do eixo Rio-São Paulo. E a alternativa para quem trabalha com audiovisual são as séries de TV e os canais de streaming.

Nesse cenário, então, é difícil pensar na possibilidade de você conseguir realizar o documentário sobre Pierre Verger que estava planejando?  Pois é, esse é um sonho enorme, mas sem ajuda governamental fica inviável porque este é um projeto que precisa de apoio, é difícil convencer uma “major” como a Netflix, por exemplo, sobre a importância de um personagem tão grande, mas que não é conhecido do grande publico. Mas não desisti não, continuo perseguindo esse projeto que considero importante para a memória, para a história brasileira.

Como você se enxerga nesse cenário de tantas incertezas? Tenho pensado muito em mudar do Brasil, tocar uma carreira no exterior porque está difícil trabalhar com audiovisual no Brasil.

Já recebeu convites?  Sim, já, e pela primeira vez tenho pensado muito em mudar para os Estados Unidos. O Brasil virou de cabeça para baixo. O concerto em Paris mostrado no documentário dirigido por Sérgio Machado e George Torres (foto/divulgação) Resenha do doc Neojiba - Música que Transforma

Com estreia  prevista para dezembro no Canal Curta, o documentário Neojiba-Música que Transforma, de Sérgio Machado e George Walker Torres, mostra o dia-a-dia dos jovens que integram o Neojiba, Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia, um dos mais bem-sucedidos programas de integração social do Brasil, às vésperas da turnê europeia realizada em 2018.

Com sensibilidade e delicadeza, o documentário revela as dificuldades e conquistas dos integrantes da Orquestra Juvenil da Bahia, formada majoritariamente por jovens em situações de vulnerabilidade, regida pelo maestro Ricardo Castro. “Ver na tela tantos momentos emocionantes do Neojiba nos coloca em êxtase do início ao fim desse filme que tem tudo para conquistar os corações de muitos e muitas mundo afora”, declarou o regente.

O documentário enfoca as mudanças que a prática instrumental promove nas vidas destes jovens e como isso impacta suas famílias e comunidades. Permeado por depoimentos, a obra tem como  fio condutor a história do violinista Iure, morador do subúrbio ferroviário de Salvador.

Através da sua rotina, a história de superação e disciplina é contada. Os diretores acompanharam  ainda os concertos nas cidades italianas de Merano, Verona e Bolonha, até chegar ao grand finale, na Philharmonie de Paris. Neste último concerto, os 2.400 lugares foram ocupados para assistir aos jovens tocando, acompanhados pela pianista argentina Martha Argerich, uma das maiores intérpretes da atualidade.