'Você sofre atos racistas e não tem onde denunciar', diz estudante sobre discriminação da UFRB

Na semana passada, professora de História foi vítima de racismo; aluno é acusado

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  • Edvan Lessa

Publicado em 15 de dezembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Morgana Miranda/CORREIO

Em entrevista à revista Philosophie Magazine, o respeitado filósofo Achille Mbembe definiu o racismo como sintoma de uma neurose fóbica, um medo. Segundo o teórico, o racista se afirma pelo ódio, percebendo o outro como ameaça da qual seria necessário se proteger, se desfazer ou destruir. Diante disso, não restariam dúvidas de que a ojeriza de um estudante ante a professora Isabel Reis, no Recôncavo, testemunhada por uma turma inteira, configura um ato de racismo.

Os trechos em vídeo mostram a situação em fragmentos, e não são, conforme os relatos, as únicas evidências da conduta do estudante que transitava apartado dos colegas de sala de aula no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), e da residência universitária onde morava. Nem a polícia conseguiu, com facilidade, localizar Danilo Araújo de Góis; o CORREIO também não o encontrou.

“Eu tentei conversar com ele uma vez, mas tudo que eu falava ele desqualificava; revirava os olhos. Ele tem um histórico dentro da residência. Certa vez, ele ficou me encarando duas horas na sala de aula, mas nunca foi só comigo”, contou Carolina Sampaio, estudante do 5ª semestre de História.

A aluna Joyce Nunes considera clara a conduta de Danilo:“Foi racismo e ponto. Não tem o que discutir”, afirma.A professora Isabel Reis também foi procurada, mas não atendeu às ligações. O sentimento entre os docentes, funcionários e estudantes envolvidos é de cautela e cansaço. Os desdobramentos incluem a Delegacia de Cachoeira, que registrou ao menos duas denúncias contra Danilo, do Curso de Ciências Sociais, após a acusação de ofensa racial, acentuada quando a docente, insistentemente, tentou entregar uma prova a ele.

A justificativa dele, em depoimento prestado na Central de Flagrantes, em Salvador, na quinta-feira (12), é de que não pegou a prova da mão de Isabel por “questão de energia”. A fala, entretanto, não torna dúbia a intenção racista, na visão de Dandara Pinho, presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-BA.“Ele foi extremamente enfático no que ele traz, no que ele carrega na vida. É preciso que haja, cada vez mais, a judicialização de casos de racismo, colocando como porta de entrada as delegacias de polícia”, sublinha.Segundo ela, o episódio reforça a importância da implementação de uma Delegacia Especializada de Combate ao Racismo, conforme prevê o artigo 79 do Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do estado da Bahia.

Reações “Momentos de revolta ao perceber que o mesmo racista que agrediu a professora Isabel Reis é o mesmo homofóbico que me agrediu e que agrediu outras companheiras negras. Por esse motivo, toda a minha indignação”, reagiu num post do Instagram Helder Souza, aluno de Cinema da UFRB. Na rede social, Ran, como é apelidado, publicou dois vídeos: um deles, onde aparece forçando a porta do quarto do colega de residência acusado.

De acordo dom Helder, antes de ser orientado a não conceder entrevistas, na sexta-feira, Danilo estaria cometendo atos de violência na residência estudantil, em São Félix, desde abril. O imóvel hospeda estudantes de cidades distantes do CAHL e que atenderam ao perfil acadêmico e socioeconômico requerido pelo Programa de Permanência Qualificada da UFRB.“Já prestei queixa na delegacia hoje (quinta-feira, dia 12), justamente para reforçar que ele é uma pessoa que não está cometendo um ato agora; ele é reincidente nesse tipo de violência e opressão”, desabafou.“A universidade foi notificada na época durante três vezes por ofício, por deliberações da residência onde a gente mora, informando esse tipo de opressão que a gente estava sofrendo e nenhuma medida foi tomada”, apontou. Estudante Danilo Góis é acusado de racismo contra professora Isabel Reis (Foto: Reprodução) Para o antropólogo Kabengele Munanga, um dos protagonistas intelectuais negros no debate nacional em defesa das cotas e políticas afirmativas, práticas como a ocorrida na UFRB parecem novidade, mas sempre existiram. “Só que não havia professora negra na universidade. Isso é um fenômeno novo, 20 anos para cá. Como não havia negros entre as pessoas brancas, não podiam se manifestar, mas agora estão se manifestando”, esclarece.

Para ele, os racistas se comportam de maneira inconsciente, achando que aquilo que fazem é natural. “Quando os negros não eram sensibilizados, muitos passavam por rejeição e não reagiam porque achavam que era normal; hoje não. Hoje, as pessoas são politizadas, são conscientizadas e sabem interpretar gestos de racismo”, reforça.

Professor sênior da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador visitante da UFRB, Kabengele argumenta que a tentativa de agressão do estudante Helder ao quarto de Danilo não se configura como racismo.“É uma violência, mas não é uma violência racista por acreditar que o outro não merece tratamento humano. Isso é legítima defesa; as vítimas do racismo não podem ser boazinhas diante dos agressores”, salienta.Na visão de Paulo Nacif, professor e ex-reitor da UFRB, quando se insere a diversidade no ambiente acadêmico, não há dúvida que haja estranhamento e manifestações surjam de diversas maneiras. “Isso porque a universidade era reservada, nos cursos de maiores validação, à classe média branca brasileira”, contextualiza.

Cotas O fato denunciado como racismo trouxe à tona a política de cotas quando a UFRB informou que Danilo Góis tentou entrar na universidade através de cotas raciais, por duas vezes, mas teve o pedido indeferido pela banca avaliadora. Conforme informou a assessoria, o graduando tentou uma das vagas residuais do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) através da categoria L4 – grupo que inclui egressos de escola pública durante o ensino médio, independente da renda, e são autodeclarados pretos, pardos ou indígenas.

Além da contradição em si entre o racismo praticado por um optante por cotas nesse formato, estudantes confidenciam tratamento discriminatório de outros cotistas, servidores e até docentes. Alguns deles, supostamente contrários às cotas.

“Quando houve o debate sobre cotas, houve professores que estavam contra. Essas pessoas deram argumentos racistas, mas não podiam dizer abertamente que eram racistas e buscaram argumentos inteligíveis, que são considerados argumentos objetivos”, problematiza Kabengele. Ainda segundo ele, nem sempre havia clareza nessas manifestações e não há ferramentas para determinar que esses argumentos configuram racismo.

Segundo o professor Paulo Nacif, apesar da UFRB ter nascido com uma política de ações afirmativas e assuntos estudantis, a implementação das cotas gerou controvérsias entre docentes.“Alguns diziam que eram a favor da meritocracia e que os alunos não estavam preparados para a universidade”, lembra.O efeito disso, na rotina do estudantes, implica em sentimento de perseguição, represálias e denúncias. “Eu entrei no Bacharelado Interdisciplinar em Saúde (BIS) pelas cotas, mas em Medicina não”, relata Camila*, estudante negra que pediu para não ser identificada. “Fui para um intercâmbio na Itália e, ao retornar, uma professora me disse: ‘Você já estudou na melhor universidade da Europa, custeada pelo governo. Você acha que teria condições para isso? Você pode até fazer seleção e cursar enfermagem, mas Medicina já é demais’. Quando eu disse que tentaria o curso, ela não quis aceitar as disciplinas que cursei fora”, relatou a veterana de Medicina.

Institucional Presidenta do Diretório Acadêmico de Nutrição e membro titular do Comitê de Políticas Afirmativas e Acesso a Reserva de Cotas (COPARC), Tamiles Santos é aluna do BIS e sente pouco acolhida na universidade. Segundo ela, num depoimento classificado como um “grito de socorro”, condutas racistas aparecem desde a sala de aula; no colegiado e reitoria.

“Como é difícil falar de racismo no CCS-UFRB. Porque aqui você sofre os atos racistas e não tem onde denunciar. É absurdo que uma universidade que se diz a mais preta de todas tenha um racismo institucional tão forte”, desabafa Tamiles.

De acordo com a jovem, uma das gestoras da Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis (PROPAAE) agiu de forma discriminatória ao pedir a um segurança que lhe entregasse um papel informando sobre uma reunião, causando-lhe constrangimento na frente do irmão caçula. “O racismo não é do segurança preto que só está cumprindo ordens. É da mulher branca, quem sabe até parda, que se diz ser amiga dos estudantes; te cumprimenta com um abraço em um dia, e no outro te vira as costas, ou passa por você e nem dá um bom dia”, expõe.

Entre 2013 e 2014, uma estudante do curso de Bacharelado em Cultura, do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (Cecult), em Santo Amaro, também no Recôncavo, levou à Defensoria Pública da União (DPU) denúncias envolvendo docentes da faculdade. Segundo Rosana*, que pediu para não ser identificada, os professores criavam empecilhos, dificultavam a convivência com a universidade e até a impediram de realizar um trabalho em grupo.

“Fui discriminada de forma tão injusta por professores e direção, e não encontrei ninguém para me defender. Todos entenderam que fui discriminada, mas tinham medo de serem perseguidos também. Procurei a justiça, fui encaminhada até a DPU e lá arquivaram o assunto. Terminei por trancar a matrícula, por me tornar uma ‘carta marcada’”, lamenta.“O meu advogado disse que professor é soberano e que o caso poderia prejudicá-lo. Para mim, que já passou por dificuldades e tomou chá de erva-cidreira com farinha, sinto como se eles tivessem me abortado no início, não foi nem no meio do caminho”, sentencia Rosana*.No CAHL, onde a acusação de racismo virou caso de polícia nesta semana, em dezembro de 2017, o professor Roberto Lyrio Duarte Guimarães se retratou publicamente num episódio envolvendo três alunas. Ele admitiu ter utilizado o termo “chibatadas” ao se referir à forma de punição que deveriam ser aplicadas a uma graduanda de Cinema e duas de Serviço Social – duas delas negras e uma, indígena – que teriam falhado na escrita de roteiros de filme durante a aula.

De acordo com um representante do Movimento Negro Unificado (MNU), no Recôncavo, ele pediu afastamento no período, mas o caso foi abafado porque ele tem uma boa relação com a comunidade acadêmica. Já as estudantes, ficaram com receio de represália. Em 2011, o professor Paulo Nacif era reitor da UFRB quando também teve um vídeo expondo falas consideradas racistas. Na época, o docente afirmou que as frases foram retiradas de contexto e o estudante que compartilhou as imagens não foi localizado.

Linha do tempo da UFRB

2005 Em 29 de julho foi sancionada a Lei 11.151 que criou a UFRB em Cruz das Almas, Amargosa, Cachoeira e Santo Antônio de Jesus. Hoje, está instalada também em Feira de Santana e Santo Amaro

2006 A UFRB foi pioneira na implantação de uma pró-reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis, a Propaae. Primeira edição do Fórum 20 de novembro, Pró-Igualdade Racial e Inclusão Social do Recôncavo

2011 Reitor da UFRB, professor Paulo Nacif, é acusado por alunos de fazer discurso racista. Segundo ele, o vídeo divulgado foi editado “cuidadosamente” para ocultar o contexto de suas colocações

2012 Sancionada em agosto, a Lei 12.711/2012 garantiria a reserva de 50% das matrículas a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. No mesmo ano, a UFRB anunciou que seria a primeira universidade a aplicar integralmente a Lei das Cotas, a partir de 2013

2013 Tem início em 13 de dezembro de 2013 a 1ª turma da formação específica em Medicina da UFRB

2014 Uma estudante da UFRB, de Santo Antônio de Jesus, afirmou ter sido vítima de racismo na Itália, onde fez intercâmbio pelo Ciências Sem Fronteiras

2016 Aluna é ameaçada ao denunciar ao Ministério Público Federal indícios de fraudes no sistemas de cotas da UFRB, que instala Grupo de Trabalho para propor acompanhamento e controle da aplicação da Lei das Cotas

2017 Instalação do Comitê de Acompanhamento de Políticas Afirmativas e Acesso à Reserva de Cotas (Coparc). Surge o MNU Recôncavo, em Cachoeira. Docente afirma que alunas de Cinema e Serviço Social deveriam receber “42 chibatadas”, após falharem em trabalho

2019 Forma a turma de Medicina da UFRB, a mais negra do Brasil. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada mostrou, em agosto, o aumento da inserção de negros nas universidades. Professora de História denuncia graduando de Ciências Sociais por racismo em sala de aula. Situação foi filmada e gerou reação em Residência Estudantil