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Agência Einstein
Publicado em 12 de novembro de 2025 às 09:11
A confirmação de um caso de peste bubônica no final de agosto nos Estados Unidos reverberou em diversos países. Muitos imaginam que essa doença — historicamente conhecida como “peste negra” — tenha ficado no passado, especificamente na Idade Média, quando se estima que tenha causado a morte de 75 milhões a 200 milhões de pessoas em todo o mundo. Mas, na verdade, ela ainda está entre nós — assim como outras enfermidades que entraram para a história. >
Além da peste bubônica, cólera e hanseníase são exemplos dessas condições. E muitas delas, ainda hoje, são negligenciadas. “Isso ocorre por vários motivos, como pelo fato de que a prevalência de muitos desses problemas está relacionada a cenários de baixa condição socioeconômica e ausência de vacinas eficazes para erradicar ou controlar os patógenos”, explica a infectologista Christiane Reis Kobal, do Einstein Hospital Israelita. É justamente isso o que leva aos atuais surtos ou casos localizados. >
Todos os microrganismos patogênicos têm como objetivo biológico primordial se perpetuar e, para tanto, buscam formas de se reproduzir. Na prática, isso significa que, por mais que o ser humano consiga criar barreiras para tentar desacelerar esse processo, a seleção natural caminha em direção a tentar selecionar características evolutivas que permitam a esses agentes infecciosos driblar nossos mecanismos de proteção.>
Por isso é tão difícil pensar na erradicação de doenças. “Em toda a história da humanidade, a única infecção que conseguimos de fato impedir que ocorra na natureza é a varíola. Tanto é que, desde 1980, quando a OMS a declarou erradicada, acabou a exigência de medidas de controle, como a vacinação. Mas essa não é a regra”, explica o epidemiologista Expedito José de Albuquerque Luna, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).>
A desigualdade social e as falhas na vigilância epidemiológica favorecem os surtos. Daí porque a chave para superar esses problemas está em garantir o saneamento básico e o acesso à água potável, ao mesmo tempo em que se oferece antimicrobianos e vacinação à população.>
“Os agentes infecciosos, sejam eles bactérias, vírus ou fungos, não desaparecem facilmente da Terra, pois fazem parte dos nossos ecossistemas tanto quanto as plantas e os animais”, pontua Kobal. “Mas, com o aperfeiçoamento das técnicas de prevenção e tratamento, muitas das doenças causadas por esses patógenos podem ser melhor controladas – mesmo que não erradicadas.”>
A seguir, saiba mais sobre as doenças que, ao contrário do que muitos imaginam, não ficaram no passado.>
Peste bubônica>
O surgimento dos antibióticos revolucionou a forma de cuidado da peste bubônica, cujos sintomas incluem febre alta, dor generalizada, falta de apetite, náusea e formação de abscessos de coloração roxa ou preta. Da mesma forma, o incentivo à higiene pessoal e o investimento em saneamento básico diminuíram a presença de roedores nas cidades, e são eles que podem carregar as pulgas transmissoras da bactéria Yersinia pestis, causadora da doença.>
Como resultado, a prevalência da condição caiu. Um documento técnico publicado em 2023 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que, entre 2019 e 2022, apenas seis países notificaram episódios da doença em seu território. Ao todo, foram 1.722 casos e 175 óbitos. A República Democrática do Congo, na África, aparece como principal região endêmica, com 1.292 casos e 79 mortes, e é seguida por Madagascar, China, Mongólia, Uganda e Estados Unidos.>
O Brasil não registra casos de peste desde 2005. Mas isso não significa que não exista o risco. Vale lembrar que tanto a Região Serrana do Rio de Janeiro quanto o Semiárido Brasileiro (que cobre a região Nordeste e uma parte de Minas Gerais) são considerados pela OMS como potenciais focos naturais de peste.>
Até os anos 1990, existia um programa administrado pelo Ministério da Saúde focado no controle da peste bubônica. Ele previa, entre outras atividades, conduzir coletas de roedores para tentar identificar a presença da Yersinia pestis em suas pulgas e assim ajudar no rastreio da doença. Contudo, a partir de 2000, essa iniciativa foi repassada para o Sistema Único de Saúde (SUS) em âmbito municipal. “Nesse cenário, existe a chance de que certas doenças pouco visíveis pelo baixo número de casos sejam deixadas de lado no registro”, observa Luna.>
Na visão do epidemiologista, nem todo profissional de saúde tem o treinamento adequado para identificar as características dessa condição rara, o que pode contribuir para um cenário de subdiagnóstico. “É possível que a gente tenha alguns casos não diagnosticados espalhados pelo país. Mas, se existirem, eles são poucos e não muito graves, caso contrário, acabariam sendo notados e notificados”, pontua o pesquisador.>
Hanseníase>
Causada pela bactéria Mycobacterium leprae, essa doença aparece na Bíblia e até em obras anteriores. No passado era conhecida como lepra, mas esse termo caiu em desuso a partir da década de 1970, em um esforço de tentar superar preconceitos associados à condição. Segundo uma revisão publicada em 2004 na revista Saúde e Sociedade, há indícios da sua existência desde 2698 a.C. na China Imperial. É possível que, da Ásia, tenha migrado gradualmente para a Europa e atingido a América no contexto da colonização.>
“A hanseníase foi considerada um problema mundial até o século 19. Com a melhoria nas condições de vida, principalmente devido ao saneamento básico, sua incidência começou a cair nas regiões que, hoje, são consideradas desenvolvidas, tais quais a Europa Ocidental, os EUA e o Japão”, relata o professor da USP. “Mas ela permaneceu circulando em alguns lugares menos desenvolvidos, como o Brasil.”>
Por aqui, a hanseníase ocorre de forma endêmica. Em 2024, 172.671 novos casos foram notificados no mundo, sendo 12,8% deles só no Brasil (22.129), de acordo com a OMS. Isso coloca o país em segundo lugar no ranking de maior número de casos no globo, atrás apenas da Índia (100.957).>
“Entre os motivos que dificultam a erradicação está seu típico diagnóstico tardio, em razão de um quadro que demora a manifestar sintomas e, quando o faz, apresenta manifestações clínicas distintas em cada pessoa”, aponta Kobal. A doença é caracterizada pelo aparecimento de manchas na pele, que podem ser brancas, vermelhas ou marrons, e pela sensação de formigamento nas mãos e nos pés. >
Se não tratada precocemente, pode causar complicações que incluem diminuição da força muscular na face e nos membros e a formação de nódulos espalhados pelo corpo. O tratamento medicamentoso é baseado em três antimicrobianos, que estão disponíveis via SUS. O processo, porém, é contínuo e demorado, variando de seis meses a um ano.>
Cólera>
Acredita-se que a cólera, uma doença bacteriana causada pela espécie Vibrio cholerae, circule desde o século 12. Segundo uma pesquisa publicada em 1994 no periódico Physis, ela teve origem na Ásia, mas foi só foi no século 19 que ocorreu a primeira pandemia. Desde então, há registro de mais seis epidemias globais, sendo que a sétima iniciou em 1961 e segue vigente. >
De acordo com um relatório publicado pela OMS, entre janeiro e agosto de 2025, foram notificados um total acumulado de 462.890 casos de cólera e 5.869 mortes em 32 países. A região do Mediterrâneo Oriental registra os números mais elevados, seguida por África, Sudeste Asiático, América e Pacífico Ocidental. Episódios de crise, como aqueles gerados por desastres naturais ou guerras, favorecem a transmissão da doença.>
No Brasil, o Ministério da Saúde indica que não há ocorrência de casos autóctones (ou seja, originados no território) desde 2006. Mesmo os casos importados são raros por aqui — o último, identificado no Rio Grande do Norte em 2018, teve origem em contaminação na Índia.>
A cólera é transmitida por contato fecal-oral direto ou pela ingestão de água e alimentos contaminados. Os casos são muito comuns em regiões subdesenvolvidas e em desenvolvimento, onde o acesso a saneamento básico é desigual. >
A maioria das pessoas infectadas não manifesta sintomas. Mas, quando aparecem, incluem diarreia, náusea e vômito, que podem ser facilmente confundidos com outros tipos de quadros clínicos. A demora na identificação da doença ainda provoca o atraso do tratamento, e o quadro pode evoluir para complicações graves, como desidratação intensa e choque hipovolêmico (diminuição da quantidade de sangue circulante no corpo).>
“Existem vacinas para prevenir a cólera, mas elas são orais e têm cobertura e eficácia muito pequenas. Também nunca foram disponibilizadas na rede pública e, mesmo no setor privado, não costumam ser oferecidas em todas as regiões, o que dificulta a proteção das populações mais vulneráveis”, destaca a infectologista do Einstein. Segundo a OMS, o estoque médio de vacina oral contra a cólera no mundo era de apenas 2,6 milhões de doses em agosto – quase metade dos 5 milhões recomendados para casos de emergência.>