Césio 137: maior acidente radiológico do mundo completa 30 anos

Substância radioativa se espalhou por Goiânia e ocasionou quatro mortes, além de deixar mais de mil pessoas afetadas pela tragédia

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  • Da Redação

Publicado em 12 de setembro de 2017 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: EBC

Cerca de 19g de um pó esbranquiçado de dia, azul brilhante à noite. Quatro mortos.  51 contaminados graves e 1.143 pessoas afetadas. Era 13 de setembro de 1987, quando dois catadores de sucata encontraram no atual prédio do Centro de Convenções de Goiânia uma máquina de radioterapia, que seria responsável pelo que é considerado o maior acidente radiológico não só do país, mas do mundo. 

Presente em um equipamento de radioterapia para tratar pacientes vítimas do câncer, o pó radioativo Césio 137, espalhou por Goiânia (GO) muito pânico e desespero. Amanhã o desastre completa 30 anos, quando Wagner Mota Pereira e Roberto Santos Alves acharam a máquina que chegava a pesar 300 kg, entre as sobras do antigo Instituto Goiano de Radioterapia.  O imóvel que tinha sido comprado pelo Instituto de Assistência dos Servidores Públicos do Estado de Goiás (Ipasgo) era administrado pelo Estado. 

A cápsula contendo o Césio 137 acabou indo parar no ferro velho de Devair Ferreira, que se encantou com a cor e brilho da substância, achando que era algo que poderia ter algum valor.  Depois de desmontar o aparelho a golpes de marreta, Devair fez questão de mostrar a novidade para a esposa, Maria Gabriela, e todos os outros familiares e conhecidos. Dias depois, todos que tiveram contato com o pó começaram a sofrer com náuseas, vômitos, tontura e diarreia, mas ninguém sequer imaginou que o mal-estar tinha algo a ver com o aquele pó tão reluzente. Devair e Maria, por exemplo, pensaram que os sintomas eram devido a uma feijoada que haviam ingerido.  A pequena Leide das Neves, 6 anos, foi a primeira vítima da contaminação. Ela não só brincou com césio 137, mas também ingeriu a substância (Foto: Reprodução) O irmão de Devair, Ivo Ferreira, ficou tão impressionado que acabou levando um pouco do pó para sua filha de 6 anos, Leide das Neves. A garota brincou com o pó e depois comeu pão com as mãos sujas, o que fez com que ela ingerisse parte da substância radioativa durante a refeição. Logo depois, Leide também passou mal. 

Foi o olhar atento de Maria Gabriela que fez com que ela percebesse que todo que tiveram contato com o pó, estavam se sentindo mal. A desconfiança da esposa de Devair, fizeram com que ele, mais um funcionário do ferro-velho levassem a capsula até a Vigilância Sanitária para que o problema fosse identificado. A peça foi transportada de ônibus, contaminando assim ainda mais pessoas no trajeto. Além disso, a peça ficou dois dias exposta em cima de uma cadeira na Vigilância. 

Diante da falta de informação e do descarte inadequado do equipamento foi só em 29 de setembro de 1987, que um físico que visitava a cidade na época desconfiou do aparelho e levantou a suspeita de que ele poderia ser uma fonte de radiação. A partir daí, o que antes era apenas um pó azul brilhante dentro de uma cápsula se transformou em uma tragédia radioativa. 

"Aproximadamente há uns 70, 80 metros já tinha estourado a escala. Eu achei que o detector estava com defeito", afirmou em entrevista recente ao Fantástico, da Rede Globo e ao Portal G1, o físico da Comissão Nacional de Energia Nuclear, Walter Mendes Ferreira. Ele foi o responsável por identificar pela primeira vez, ainda na Vigilância Sanitária, a fonte de radiação.  "Quando fomos até a casa de Ivo, sua filha Leide era uma fonte ambulante. Os valores que ela tinha eu não conseguia medir, o detector já estava saturado também. As taxas eram extremamente elevadas, inadequadas para o convívio de qualquer ser humano, por isso foi evacuada toda a região", completou o físico. “Brilho azul”

A população foi orientada pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), que montaram um esquema de triagem no Estádio Olímpico. Durante a descontaminação, cerca de 112 mil pessoas foram colocadas em quarentena e banhadas constantemente com utilização de esfregão. Sete pontos de Goiânia que foram evacuados na época do acidente por causa do alto índice de radiação.

Cerca de 6 mil toneladas de material contaminado estão enterrados em duas enormes caixas de concreto para um depósito especial, localizado no município de em Abadia de Goiás, 23,3 km da capital Goiânia. Agentes da comissão, policiais e bombeiros também ficaram encarregados de destruir os utensílios pessoais das pessoas que tiveram contato com o pó, uma vez que esses objetos estavam igualmente contaminados. 

Irmão de Devair e de Ivo, Odesson Alves Ferreira, foi a última pessoa a sair da quarentena.

"Peguei um fragmentozinho, do tamanho de um grão de arroz, mais ou menos e coloquei na palma da mão e esfreguei nos dedos. A amputação do dedo foi proveniente disso, porque queimaram também esses dois dedos justamente onde eu peguei”, contou também em entrevista ao Fantástico.  

Quarenta e nove pacientes vítimas da radiação do césio 137 foram levadas para o Rio de Janeiro, onde foram tratados no Hospital Naval Marcílio Dias, referência no tratamento de vítimas de acidentes radioativos. Vinte e um desses pacientes passaram por tratamento intensivo. Foram registradas oficialmente quatro mortes causadas pelo césio-137. A primeira delas foi a filha do Ivo Alves Ferreira, a menina Leide das Neves Ferreira, que morreu em 23 de outubro de 1987. Maria Gabriela Ferreira, de 37 anos, esposa de Devair também morreu no mesmo dia. 

No dia 27 de outubro, um dos funcionários do ferro-velho, Israel Batista dos Santos, de 20 anos foi mais uma vítima da tragédia. No dia seguinte, outro funcionário do mesmo ferro-velho, Admilson Alves de Souza, de 18 anos, foi o quarto a vir a óbito, devido à contaminação. As vítimas foram sepultadas um caixão especial revestido com chumbo para evitar a propagação da radiação.

No âmbito radioativo, o acidente foi o 2° maior da história, atrás apenas do acidente na usina nuclear de Chernobyl, em 1986, na Ucrânia. O césio 137 é um isótopo radioativo resultante da fissão nuclear de urânio ou plutônio, que ao se desintegrar dá origem ao bário 137m, quando o composto passa a emitir radiações gama. Estes raios possuem um alto poder de penetração, o que provoca um alto risco à saúde com intoxicação pela radiação e doenças graves, como câncer. O césio-137 apresenta uma meia-vida de cerca de 30 anos e é usado, sobretudo, em aplicações médicas, industriais e hidrológicas.

30 anos depois

Três médicos responsáveis pela clinica abandonada, mais um físico e o dono do prédio foram condenados em 1996 por homicídio culposo – quando não há intenção de matar. Os médicos Carlos Bizerril, Criseide Dourado e Orlando Teixeira além do físico Flamarion Goulard receberam a pena de três anos e dois meses em regime aberto de detenção. Em 1997, a pena foi substituída por serviços comunitários. O dono do prédio Amaurillo Monteiro foi condenado a 1 ano e 2 meses, depois conseguiu a suspensão da pena. Em 1998, todas as penas foram extintas por um indulto presidencial. 

O crime prescreveu em 2005. Trinta anos depois da tragédia, no último dia 2 de setembro, em entrevista ao Fantástico, o físico Flamarion Goulard levanta mais uma polêmica sobre o caso."Esse equipamento não estava largado lá. Aquele equipamento quando foi desmontado, o cabeçote foi lacrado e transferido para o Hospital Araújo Jorge. Ele acabou voltando para a clinica, mas não sei explicar porquê. O Doutor Bizerril sabia muito bem do risco desse equipamento. Não sei quem nem como levaram esse equipamento para lá”, revelou, sem justificar no entanto, como o equipamento foi parar no prédio abandonado. Diante da declaração, a associação mantenedora da unidade instaurou uma sindicância para apurar a denúncia feita três décadas após o fato. As pessoas afetadas pela radiação recebem cobertura do plano do Instituto de Assistência aos Servidores Públicos do Estado de Goiás (Ipasgo), além de pensões. No entanto muitos ainda relatam que faltam apoios médico e financeiro.

Devair, o dono do ferro-velho morreu de cirrose em 1994. Um enfisema pulmonar matou seu irmão, Ivo, o pai da menina Leide em 2003. Ambos caíram em depressão: Devair, por se sentir culpado por abrir a capsula e Ivo, por conta da morte de sua filha. Os dois catadores que tiraram o equipamento da clínica estão vivos. Wagner Mota Pereira ainda corre o risco de amputar um pé queimado pelo césio. Já Roberto Santos Alves teve o antebraço amputado na época. 

O Centro de Atendimento aos Radioacidentados (Cara) é o órgão da Secretaria Estadual de Saúde de Goiás (SES-GO) responsável pelos atendimentos às vítimas do césio-137. Dados da Superintendência Leide das Neves (Suleide) apontam que a unidade presta assistência direta, atualmente, a 738 vítimas.

Conhecido como Jajá, o comerciante Jair Onofre do Prado, hoje com 65 anos, era vizinho de Devair, quando ainda morava em frente ao ferro-velho em que a peça foi aberta totalmente, na Rua 26-A, localizada no Setor Aeroporto.“Parece que foi ontem, quem viveu não esquece. A gente sofreu discriminação. Se falasse que morava na zona do césio, era terrível, a pessoa se afastava”, relatou ao G1.Os pacientes estão divididos em três grupos: os que apresentaram mais de 20 rads no corpo, que é a unidade de medida de quantidade de radiação identificada; os com menos de 20 rads; e o formado por vizinhos do local onde houve o acidente e trabalhadores que atuaram na área contaminada. Os filhos e netos dos dois primeiros grupos também têm direito à assistência.

CRONOLOGIA: COMO TUDO ACONTECEU

1985 A história começa em 1985, ano em que um instituto de tratamento de câncer desativa sua unidade de Goiânia. Quase todos os equipamentos foram levados, mas uma máquina de teleterapia (espécie de radioterapia) é deixada para trás. O aparelho usava cloreto de césio em pó como fonte de energia.

13 de setembro de 1897  Dois catadores de reciclagem retiram parte do aparelho da então clínica abandonada, o Instituto Goiano de Radioterapia. 

18 de setembro de 1987  Os dois vendem a peça de mais de 300 kg para um ferro velho. O dono do lugar, de nome Devair, chama dois funcionários para completar a desmontagem. Lá dentro do cabeçote de chumbo, os trabalhadores encontram um capsula com 19g de um pozinho, esbranquiçado de dia, mas com um brilho azulado quando colocado no escuro noite.  No dia seguinte, Devair já começa a passar mal e põe a culpa em uma feijoada. 

24 de setembro de 1987  Ivo, irmão de Devair visita o ferro velho e leva um pouco do pó brilhante para casa no bolso da calça. A filha dele, Leide brinca com o pó e logo depois come um pão com as mãos ainda sujas. Um dia depois, Leide começa a passar mal. 

 28 de setembro de 1987 Desconfiada da substância de brilho azul, Maria Gabriela, mulher de Devair, convence o marido a levar a peça para a Vigilância Sanitária. Um funcionário do ferro velho ajuda Devair a carregar ao equipamento que é transportado dentro de um ônibus coletivo. 

30 de setembro de 1987 A cápsula ficou dois dias em cima da cadeira na Vigilância Sanitária.  Até que um físico que estava em Goiânia por acaso, é acionado. Ele consegue um medidor de radiação e identifica o perigo do equipamento. É ai então que os técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e policiais militares começam a descontaminação da região.  Mais de 112,8 mil pessoas são monitoradas (129 estavam gravemente contaminadas) e 6 mil toneladas de material contaminado vão para um depósito especial. 

23 de outubro  Morrem no mesmo dia, um mês depois da contaminação, a menina Leide Ferreira, de 6 anos,  filha de Ivo e Maria Gabriela Ferreira, de 37 anos, esposa de Devair.

27 de outubro Morre um funcionário do ferro velho, Israel Batista dos santos, de 20 anos. 

28 de outubro  Um dia de depois de Israel, morre também o outro funcionário do ferro velho, Admilson Alves de Souza, 18 anos. 

1996  Três médicos responsáveis pela clinica abandonada, mais um físico e o dono do prédio foram condenados por homicídio culposo com pena de três anos e 2 meses em regime aberto  de detenção. 

1997  Os médicos Carlos Bizerril, Criseide Dourado e Orlando Teixeira além do físico Flamarion Goulard tiveram a pena foi substituída por serviços comunitários. O dono do prédio Amaurillo Monteiro foi condenado a 1 ano e 2 meses, depois conseguiu a suspensão da pena. 

1998 Todas as penas foram extintas por um indulto presidencial.

2005  O crime foi prescrito pela Justiça.