Doce de araçá: histórias medicinais do Hospital da Santa Casa de Misericórdia

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  • Nelson Cadena

Publicado em 4 de agosto de 2017 às 17:02

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Durante boa parte do século XIX,  o Hospital da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, desde 1893, quando inaugurada a nova sede de Nazaré, conhecido como Hospital Santa Izabel, adquiriu, para servir de sobremesa aos doentes, através de uma considerável provisão mensal, doce de araçá, a nossa popular goiaba. Mas, por que a preferência pelo doce de araçá e não de outra das muitas frutas nativas e em abundância disponíveis nos mercados, abastecidos pelos saveiros oriundos do Recôncavo e da Ilha de Itaparica e outras do entorno? Também gostaria de saber.

Os registros contáveis da Santa Casa de Misericórdia da Bahia detalhavam, ano a ano, as despesas de cada uma das instituições da Casa e, no caso específico do hospital, elencava cinco origens de custo em relação aos alimentos: carne verde, galinhas (das quais a Santa Casa se beneficiava com o imposto sobre o comércio das aves), pães, biscoitos e bolachas, comestíveis diversos e doce de araçá. É obvio que o destaque na contabilidade ao doce de goiaba não era nada fortuito, tinha um certo grau de importância. Qual?

 Parece óbvio que a fruta em questão tinha propriedades medicinais muito apreciadas pelos facultativos da época e esse era o motivo do farto consumo no hospital. O doce era adquirido exclusivamente para o estabelecimento, não constava da despensa do Asilo dos Expostos e do Recolhimento das Mulheres no Campo da Pólvora e nem do Asilo João de Deus, em Boa Vista de Brotas, instituições mantidas pela Santa Casa. 

 Uma dessas propriedades medicinais seria no combate às câimbras, conforme relatou Gabriel Soares, em 1587, em sua Noticia do Brasil: “Os araçazeiros são outras árvores que pela maior parte se dão em terra fraca na vizinhança do mar. A flor é branca e cheira muito bem. Aos frutos chamam araçazes, que são da feição de nêsperas, mas alguns muito maiores. A fruta se come inteira, e tem a ponta de azedo mui saboroso, da qual se faz marmelada, que é muito boa e melhor para os doentes de câibras”.

Mas simples câimbras justificariam um farto e contínuo consumo por quase todo o século referido? É claro que não. Penso que a goiaba era consumida para o combate ao escorbuto e inflamações e também pelas suas propriedades antidiurética, antidiarreica, antibiótica e anti-hemorrágica, conforme preconizado por alguns médicos da época. O escorbuto e a disenteria eram as doenças que mais afetavam as tripulações oriundas da Europa, Ásia, ou da África: marinheiros, soldados e escravos recém-chegados, em condições de extrema fraqueza, eram enviados ao hospital para tratamento. 

O escorbuto, causado pela falta da vitamina C durante longos períodos, o tempo das viagens continentais, era recorrente na Bahia. Uma doença típica de uma cidade portuária com intenso movimento. O araçá, rico em vitamina C, muito mais do que a laranja, limão, abacaxi e outras cítricas, era a fruta ideal para ser consumida nas circunstâncias referidas. Mas, por que na forma de doce e não in natura? Quatro produtos eram preparados, naqueles idos, com a fruta: marmelada, goiabada, goiaba em calda e geleia de araçá. Um deles era o doce referido nos registros contáveis da Santa Casa. 

Tudo indica que era uma questão cultural. No seu livro “Açúcar”,  Gilberto Freire ressalta a importância do produto, farto na Bahia, mesmo após a queda das exportações. O ilustre pernambucano destacou o doce de coco e o doce de araçá entre os preferidos pelos nordestinos. Não se conheciam os malefícios do açúcar, naquele tempo. Se o doce de araçá trouxe algum benefício aos doentes,  não sabemos. Porém, desconfiamos que fosse usado como purgante a julgar pelo grosseiro decassílabo em versos de Gregório de Mattos em que o capitão Rapadura pedia ao poeta que lhe fizesse uma obra “sobre haver purgado uma fêmea com doce de araçá”.