‘Não existem índios no Brasil’, diz o escritor Daniel Munduruku

Autor indígena premiado internacionalmente destacou, na Flica, que é preciso desconstruir o estereótipo

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  • Laura Fernades

Publicado em 8 de outubro de 2017 às 12:14

- Atualizado há um ano

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A professora, escritora e ativista carioca Eliane Potiguar também participou da mesa A Imperdoável Capacidade Humana de Apagar seus Antepassados por Foto: Paolo Paes/Divulgação

“Apesar dessa minha aparência, do meu cabelo liso, dos meus olhinhos puxados, da maçã do rosto saliente, eu não sou índio. Ainda diria mais: não existem índios no Brasil”, disse o escritor paraense Daniel Munduruku, 53 anos, premiado internacionalmente por sua contribuição com a literatura indígena, durante a última mesa da Festa Literária Internacional de Cachoeira, na manhã deste domingo (8).

Pertencente à etnia indígena mundurucu e graduado em filosofia, história e psicologia, com mestrado em antropologia social pela USP, Daniel justificou que ser chamado de índio é um apelido, já que envolve um estereótipo que habita o inconsciente coletivo. De um lado, exemplificou o autor, existe a imagem do índio que vive na floresta, “tranquilão, respirando ar puro” e que fica o tempo inteiro na rede “coçando o pé”. Do outro, há a visão do “índio preguiçoso, selvagem, atrasado, sujo e traiçoeiro”.

“Nascer índio é um defeito, porque essa imagem foi o tempo inteiro sendo jogada na cabeça da gente”, denunciou Daniel, durante a mesa A Imperdoável Capacidade Humana de Apagar seus Antepassados, que contou mediação de Suzane Lima Costa e participação da professora, escritora e ativista carioca Eliane Potiguara. Esse estereótipo, destacou Daniel, foi sendo construído na memória ao longo do tempo, principalmente por meio da formação do pensamento universitário e das escolas, que “seguem a lógica colonialista”.

“A palavra índio não retrata minha experiência de pertencimento a um povo. Não sou índio, sou mundurucu. Pertenço a um povo e esse povo tem um lugar, uma história, tradição, cultura, religiosidade, economia... No entanto, quando as pessoas me chamam de índio, elas ignoram a minha experiência de humanidade. Quando digo que não sou índio, digo que não sou uma ideia que as pessoas desenvolveram equivocadamente. É isso que nós queremos trazer com a literatura que nós escrevemos”, justificou.

Filha de nordestinos, pobres, mulheres e negras, “quatro tipos de discriminação”, Eliane Potiguara reforçou que os povos indígenas não são pessoas que não querem trabalhar. “Lutamos para um desenvolvimento sustentável voltado para nossa produtividade. Os povos negros e indígenas, sempre foram os mais discriminados. Deveríamos ter mais compaixão, solidariedade e não pena e discriminação. É isso que os povos indígenas sofrem em cinco séculos de colonização”, denunciou Eliane, 67.

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Nomeada embaixadora universal da paz, em Genebra, a autora chamou a atenção para o fato de que existem mais de 330 povos indígenas no Brasil, “cada um com uma raiz, com suas características linguísticas, com sua cultura”. Apesar disso, o preconceito não permite que essa diversidade tenha espaço. “Como indígenas, sempre fomos povos invisíveis”, lamentou. “Demos um passo grande e não vou dizer que saímos da invisibilidade, mas estamos visíveis. Esse momento é um momento histórico que vocês estão vendo: pela primeira vez, dois escritores indígenas na Flica”, comemorou.

Durante o evento, Daniel Munduruku destacou que já existem 180 títulos de escritores indígenas publicados no país e que faz literatura para ajudar o Brasil “a rir de si mesmo”. “Aprendi com um filosofo grego que a melhor forma da gente incomodar, é ironizando as coisas. Um pouco da minha verve literária veio da capacidade de olhar para os acontecimentos do mundo e rir. Rir da gente mesmo é uma forma de proteção. Fazer piada de si mesmo é sempre o melhor remédio”, defendeu.

O autor também chamou a atenção para o fato de que é necessário construir uma identidade e autoestima indígena no Brasil, que segue resistindo. “Os povos indígenas estão sobrevivendo, estamos tentando nos manter vivos. É muito sofrimento, lamento, choro. Mas se tem uma coisa que me orgulho é que temos uma resistência que tem a ver com o espírito da gente, com nossa alma ancestral. É essa dignidade que nos causa alegria. Não somos seres do passado, somos seres contemporâneos desse mundo em transformação”, finalizou.