Via-sacra rumo à estação Cora Coralina

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 18 de março de 2018 às 04:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Ilustração: Pedro Saci [Escalo outeiro serpenteado e, em seguida, subo os 102 degraus da Igreja de Santa Bárbara, construída no final do século 18 com mão de obra de escravos devotos. Ao chegar ao alto da montanha, este caminhador sua e arfa. Respiro fundo. Sigo devagar até porta azul-clareado-pelo-tempo do rústico templo. Abro braços em cruz. Beijo a madeira ressequida três vezes. Rezo versos de minha lavra]. [Estou pela oitava vez em 18 anos na Cidade de Goiás, no coração do Brasil, e pela oitava vez repito este ritual]. [São 8h30 de 7 de março de 2018].

Em tempos idos, eu seguia por jornadas diárias nas ruas de pedra da cidade, pouco afeitas a caminhadas de longo curso. Desde 2014, flano por bucólica, e plana, pista de 1,3 quilômetro que margeia o rio Vermelho – pertinho da casa onde a grande poeta Cora Coralina nasceu em 1889.

Nas primeiras voltas, ou ‘estações’ – como as chamo, em assumida licença poética cristã – eu me deixo abestalhar pelo derredor: o verde exuberante da Serra Dourada. A correnteza eloquente do rio Vermelho. As psicodélicas borboletas.  A afinada sonata dos passarinhos. [Só a partir da quinta estação ponho, de fato, os meus pés no chão e olho para onde piso  – e realizo duas operações: 1. Cata-lixo – com a intenção expressa de recolher dejetos e jogá-los nas lixeiras + próximas. 2. Caça-ao-tesouro – com o objetivo lúdico de descobrir algo que possa me sinalizar premonição alentadora].

Não morreria de fome, muito menos de tédio, se gari fosse. Eis os números dessa operação cata-lixo: três sacos plásticos – achados no gramado ao redor da pista de caminhada – lotados de canudos, copos, embalagens de hambúrgueres, carteiras de cigarros vazias etc.

Capto com certa acuidade a miríade de dejetos espalhados pela deletéria mão humana. Mas meus olhos ainda argutos conseguem enxergar, apenas ao final da nona estação,  colorida mancha vermelha, amarela e azul. Aproximo-me do objeto da busca: guarda-chuva quadriculado depenado, desvarado e avariado abatido em recente tempestade, está  ali jogado, ao diabo-dará – e o carrego feito um gato morto até a lixeira + próxima.

Os números da operação caça-ao-tesouro são + modestos. Acho dois dejetos com algum valor agregado – ou seja, me inspiram algum insight. Curvo-me e pego papel amarelo brilhante que envolveu bombom de chocolate cuja marca – ouro branco – me remete a alguma eventual riqueza material por vir. Mais adiante me curvo de novo e iço no bojo das ramagens de pequena árvore folha quase inteira de caderno 18 por 24 centímetros. Falta-lhe pedaço retangular no qual, pode-se presumir, algum adolescente escreveu o número do celular e passou para outro adolescente.

[Enfio esse pedaço de papel jogado ao léu no bolso do moletom e nesse pedaço de papel  escrevo o rascunho inicial deste texto]. [Cansado,  mas não extenuado, sigo para cafezinho recém-coado e dois dedos de prosa e com o ectoplasma de Cora Coralina, na casa da esquina do rio Vermelho com a rua que dá na igreja de Nossas Senhora do Rosário].