COLUNA REBOBINA

De cinéfilo à cineasta: como o Cineclube da Bahia, de Walter da Silveira, formou uma geração do cinema baiano

Atividade cineclubista na Bahia abarcou um período de mudanças e renovações no cenário de produção e fruição cinematográfica; veja vídeo

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  • Christina Mariani

Publicado em 30 de abril de 2024 às 20:00

Walter da Silveira no set de
Walter da Silveira no set de "Tocaia no Asfalto" Crédito: Reprodução

Ao resgatar memórias pueris, esbarro no desejo pela ausência. A infância em uma cidade do interior da Bahia, nos primeiros anos do novo milênio, tanto pode gerar memórias aprazíveis como despertar o desejo de viver tudo o que era, em algum momento, inexistente. Meu desejo, por sinal, era o de visitar a qualquer hora uma sala de cinema, mas, sem contar com as viagens às capitais, o que me restava eram as experiências coletivas nos raríssimos cineclubes que, vez ou outra, faziam exibições na cidade.

A experiência nos cineclubes era menos uma troca de ideias sobre cinema que uma diversão de crianças. Anos mais tarde, porém, um convite despretensioso para coordenar uma mostra de curtas-metragens universitários, tornou-se um ótimo pretexto para formar um cineclube. A primeira exibição foi de um filme baiano, dos anos 1980, o primeiro do Brasil a assumir a iconografia da ficção-científica: Abrigo Nuclear. Contamos com a presença da produtora, Laura Pires, uma das atrizes do filme, Sandra Valença, e alguns gatos pingados.

Para a preparação dessa exibição prematura, não apenas assisti pela primeira vez ao filme de Roberto Pires, como aprendi que foi com a criação de um cineclube que uma geração do cinema baiano se formou.

O Cineclube da Bahia

Em junho de 1950, o advogado trabalhista Walter da Silveira criou o Cineclube da Bahia que abarcou um período de mudanças e renovações no cenário de produção e fruição cinematográfica baiana. Com sua atividade cineclubista, Walter gerou uma mudança no repertório cinematográfico, antes limitado ao star system das produções hollywoodianas, aproximando os baianos do neo-realismo italiano, da nouvelle vague francesa e do realismo poético francês. Vale ressaltar que o clube não foi criado para ir contra o cinema norte-americano, estava muito mais interessado em entender o filme enquanto expressão artística.

O cineclube foi fundado e montado seguindo o “modelo francês”, como afirma José Umberto Dias, cineasta e um dos seus frequentadores. A princípio, foi instalado no auditório da Secretaria de Educação e Saúde, com o apoio do então secretário Anísio Teixeira. Ainda segundo Dias, no posfácio do livro de Walter da Silveira (1978), o Cineclube da Bahia (CCB) foi composto por um quadro de quase 300 sócios, e tinham outras finalidades para além da exibição de filmes, como a organização de uma biblioteca especializada, uma filmoteca, realização de cursos, debates e a publicação de um periódico.

Assim como observam-se em outros movimentos do cinema moderno, como a nouvelle vague, com a atividade de Edgar Morin, o cineclube e, por consequência, a cinefilia foi uma religião produtiva. Na Bahia, entre 1959 a 1964, houve um período de efervescência, com o chamado Ciclo Baiano, com a produção de sete longas-metragens e diversos curtas-metragens.

É desse período que surgem nomes como Glauber Rocha, Roberto Pires, Rex Schindler, Oscar Santana, Olney São Paulo, Palma Neto, David Singer, Braga Neto e muitos outros. O Cineclube da Bahia não apenas aproximou os frequentadores de outras produções, como engatilhou a produção cinematográfica baiana.

"Além de suas críticas e artigos publicados nos periódicos baianos, suscitaram uma efervescência no debate, estudo e produção cinematográfica, tornando Salvador um pólo difusor de cultura cinematográfica de vanguarda, que teve no Cinema Novo sua representação mais marcante."

Trecho do artigo “Walter da Silveira e o Clube de Cinema da Bahia”, de Thiago Barboza de Oliveira Coelho, pag. 4
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Menos de um ano após a sua criação, em abril de 1951, o CCB realizou um Festival Internacional do Filme de Curta-Metragem. Ao todo, doze países participaram no festival, e nunca antes houve evento do gênero tão organizado como aquele.

O criador

Advogado, engajado politicamente, pai de sete filhos e um ser temperamental, este era Walter da Silveira. Houve um período que os encontros do cineclube aconteciam no Cine Guarany, próximo ao colégio Central, o que atraía adolescentes que “filavam” aula. Era comum Walter parar as exibições quando os secundaristas conversavam ou riam demasiadamente durante a sessão, com direito a longos sermões. Por ser um advogado, dizem os relatos dos que o conheceram, falava com admirável eloquência.

Nas palavras de André Setaro, “A plateia e balcão do Guarany estão lotados. Sábado de manhã de 1965. A maioria dos espectadores constituída de estudantes do Central, que, filando aulas – sábado, naquele tempo, também tinha aula –, adquire o conhecimento do filme como arte. Uma turma, porém, de capadócios, que está ali,naquela sessão, apenas para perturbar, grita, ri e assobia diante dos passos poéticos de Hiroshima,mon amour, de Alain Resnais. Num determinado momento, Walter da Silveira, temperamental como era, levanta-se e solicita que a projeção seja interrompida e as luzes da sala se acendam. Diante da plateia, que fica silenciosa, Walter dá tremenda reprimenda nos jovens assanhados, fazendo-os ver que Hiroshima é uma obra de arte e merece todo o respeito e todo o silêncio.”

Seu esforço era fazer com que compreendessem o cinema como forma artística e não somente como entretenimento para o grande público. Seu contato com a arte cinematográfica, afinal, era longevo. Walter começou a escrever notas sobre cinema aos 13 anos para o jornal O Imparcial. Antes produzia pequenas notas, muito mais descritivas que analíticas. Com o tempo, porém, veio a desenvolver análises, embora possa ser reconhecido muito mais como um ensaísta que como um crítico.

Em 1968, ao lado do cineasta Guido Araújo, ministrou o Curso Livre de Cinema, em parceria com a Universidade Federal da Bahia, à época sob coordenação de Edgar Santos, reitor que trouxe inovações no campo das artes e linguagens. O curso formou críticos e pesquisadores de cinema, dentre eles André Setaro, Umberto Dias e André Luiz Oliveira. Walter da Silveira acompanhou as atividades do curso até 1969, quando se afastou por conta de complicações de saúde, sendo mais tarde diagnosticado com câncer.

A cinefilia cria autores

Para o pesquisador Rafael Carvalho, a comunidade cinéfila, formada na Bahia, tem na figura de Walter da Silveira o seu maior expoente. Segundo o autor, as práticas culturais que constituem a cinefilia, isto é, o “ver, comentar e difundir os filmes”, encontraram na influência de Silveira um padrão e modelo a ser seguido, em especial, por meio dos encontros no CineClube da Bahia.

O movimento cineclubista, desta forma, firmou-se através da liderança de jovens com uma forte tradição cinéfila e crítica, diante da insurgência de reflexões e pensamentos críticos que povoariam muitas das suas produções.

Walter da Silveira, ao tratar o cinema como forma artística e não apenas como entretenimento, inaugurou uma nova era de produção cinematográfica na Bahia. Tanto na realização de filmes como no pensamento de cinema e produção teórica, contribuindo para a criação dos embrionários do Cinema Novo e sendo referência perpétua para a história do cinema baiano.