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Coluna Vertebral: Um negro gato de ‘arripiá’ bate à porta


 

  • Da Redação

Publicado em 07/05/2017 às 08:10:00
Atualizado em 17/04/2023 às 01:57:07

Não estava lá muito benjor. Era meio-dia de sábado solar no Rio de Janeiro, e eu estava preso em casa à espera do instalador de tevê a cabo. Morava em pequeno apartamento do Botafogo para onde acabara de me mudar. [Era 2008]. Olhava-me no espelho do banheiro e me via aqueles personagens de histórias em quadrinhos que liberam fumaça pelos ouvidos e fuças quando estão cheios de ira. [Era o (meu) caso].

Estava imerso em padrões de raiva abissais, à beira do colapso nervoso, quando o porteiro interfonou: - Seu Rogério, o rapaz da operadora X está aqui. Posso mandar subir? Meus padrões de adrenalina baixaram na velocidade do som. Felicidade serena (e besta) me invadiu. Afinal prometeram que resolveriam meu ‘falso’ problema havia quase dois meses: aquele momento banal me era pequena redenção.[Quando as grandes questões da nossa vida pessoal continuam irresolvíveis, a possibilidade de ter qualquer  questão doméstica saneada, por mais ínfima que seja, nos redime. Cada um tem a redenção que pode ou que merece – sabe-se lá – na verdade não se sabe nada de nada – na verdade, merdamos à deriva].Alguém bateu à porta. Abri. Senti-me ‘abençoado’, como se deixasse entrar agente literária capaz de me galgar à condição de o ‘escritor do momento’ no Brasil, e depois, quiçá, do mundo. Então vi negro alto e belo, espadaúdo, lindos dentes, sorriso de orelha a orelha. Cumprimentou-me: - Bom dia, xará. Desculpe a demora. Com aquela bela estampa à minha frente, relevei, e derreti-me: - Problema nenhum. Coisas do Rio, cara. Pode entrar.

Só quando o negro de bela estampa já cabeava os cantos da sala, atentei-me, e lhe perguntei: - Xará? Ele: - Sim, xará. No nome e no sobrenome. Apertou-me as mãos, e tonitruou: - Rogério Menezes, muito prazer! Tirou documento do bolso e pude constatar: afinal, conhecera o meu ‘duplo’. Achei extraordinário, intuí: aquilo mudaria tudo em mim – puro delírio de gente apavorada com o fato de a existência ser errático fogo-fátuo. [Spoiler: conhecer o meu ‘duplo’ não mudou em nada a minha vida, caro leitor!].

Impulsionado pela adrenalina, puxei-o num forte abraço. Ao nos desapartarmos, revelou: torcia pelo Flamengo, tinha nega chamada Tereza e morava no morro da Mangueira: - Quando criança fui vizinho de Cartola, xará! Tive vontade de me fundir nele, grudar-me nele, naquele colosso de ébano, e daquela sala sair para todo o sempre transformado em dois-em-um que me salvaria a lavoura. [Errado: em meia hora, serviço concluído, o meu ‘duplo’ se despediu com o mesmo sorriso com o qual entrou – e eu, em quase desespero, pensava na possibilidade de lhe rogar de joelhos: - Fica! Fica!].

Na hora da despedida, abraçou-me com entusiasmo: - Que bacana conhecer cara com o mesmo nome e sobrenome que eu. Vou ligar pra Tereza e contar. Fica com Deussssss, xará. [Fiquei com Deussssss por mais de uma hora pelo menos. Depois fui caminhar no Aterro do Flamengo].