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Oração a São João nesta hora de danação da nação


 

  • Da Redação

Publicado em 23/06/2019 às 05:00:00
Atualizado em 19/04/2023 às 22:44:04
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Agora na hora de nossa (má) sorte como nação, preciso desesperadamente chamar especial  atenção para substantivo abstrato cada vez mais abstrato, como se houvesse sido  arrancado a fórceps da linguagem vocabular brasileira. Está demodê – ou, para usar adjetivo que também já saiu de moda: cafona. A palavra é (ou era?) compaixão, que é (ou seria?) a capacidade humana de se colocar no lugar do outro e lhe acolher dores e mágoas.

Reconheço 1: Nutrir tal sentimento neste mundo inflado por egos cegos, não é para os fracos.

Reconheço 2: Brasileiros não estamos sós nesta desconstruçã o da compaixão, nesta des-compaixão – o mundo inteiro também segue essa mesma trilha egóica. [Hoje véspera do dia de São João, festejadíssimo nas profundezas dos nossos grandes sertões – tempo de cantar ‘olha pro céu meu amor, veja como ele está lindo’ -, conclamo: - Devolvei-nos  a compaixão perdida, ó santo que incendeia nossos corações.]

No então chamado curso primário a professora de português tinha dificuldade em nos fazer entender o que era exatamente substantivo abstrato, e ela repetia, incansável: - Prestem atenção, alunos, é tudo aquilo que não podemos ver ou pegar. Podemos apenas sentir. Então algum aluno tonto a interrompia, e dizia: - ‘Cumassim’, professora? ‘Num’ entendi. Eu já tinha compreendido tudo, e era engraçado ouvi-la perorar: - Vocês já aprenderam o que é substantivo concreto, certo? É tudo aquilo que a gente pode ver e pegar, feito as cadeiras nas quais vocês estão sentados. Já o substantivo abstrato existe, de fato, mas não pode ser visto ou tocado. 

[Em seguida a professora Léa olhou para mim, e perguntou: - Rogério, você poderia citar exemplo de substantivo abstrato? Assim de chofre, fiquei sem palavras, titubeei – mas alguém me soprou no ouvido – sabe-se lá quem, nunca soube de onde vêm minhas  (ins)pirações – e a palavra compaixão escapuliu da minha boca – e ouvi a professora Léa bater palmas, e exclamar: - Absolutamente certo!] [Também percebi o olhar de desprezo de alguns colegas de classe].

O Dicionário Houaiss define assim, de maneira esplêndida, o significado da palavra compaixão: ‘Sentimento exclusivamente humano de simpatia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de minorá-la; participação espiritual na infelicidade alheia que suscita impulso altruísta de ternura com o sofredor.’ [Talvez o notável dicionarista tenha sido poético em demasia na definição desse termo, o que o torna ainda mais digno de minha enorme admiração – amo (bons) dicionários].

O filósofo francês Jean-Paul Sartre tirou o dele da reta e, blasê, decretou: ‘O inferno são os outros’. Em planeta no qual a maioria da população vive em abjeta miséria – econômica e existencial – achar que toda a dor do mundo é apenas minha ou sua é deletério demais. [A propósito, em algum momento do final do século 20 vi pichação em muro desta Salvadores, que nunca me saiu da cabeça: ‘Por um mundo menos humano’ Antes fosse]. [Em tempo: salve São João Xangô menino!]