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História real de inglesa que se apaixona por pescador é contada em livro de Arlete Soares


 

Trabalho artesanal narra história de avó materna da fotógrafa e editora baiana; projeto gráfico foi o último realizado por Flávio Oliveiras

  • Vinicius Nascimento

Publicado em 06/04/2022 às 06:00:00
. Crédito: Foto: Flávio Oliveiras

Arlete Soares tem muita experiência com o mercado editorial. Em 1979, fundou a Editora Corrupio para publicar um livro de Pierre Verger e, desde então, trabalhou editando vários artistas gigantescos que passaram pela Bahia. Nomes como Vivaldo da Costa Lima, Mestre Didi, Antônio Risério, Zélia Gattai, Carybé, J. Cunha e Mabel Velloso preenchem seu catálogo - foram 41 anos dedicados à cultura afro-baiana, revolucionando o mercado editorial. Também publicou vários livros com os registros que a transformaram numa das mais importantes fotógrafas baianas.  

Agora, chegou a vez dela ir para o outro lado da mesa. "Pela primeira e única vez", garante com o humor ácido que lhe é característico.  Arlete lança quinta-feira (7),, a partir das 18h, no espaço Oliveiras, na Rua Direita do Santo Antônio, o livro Sobre Helen, um diário sobre sua avó, Helen Edgington, figura que morreu mais de três décadas antes de seu nascimento, mas que foi e é presente na sua vida até os dias de hoje.

Engavetado por longos períodos, o texto foi inúmeras vezes retomado para novamente ser resguardado. Sobre Helen é uma bioficção  baseada na história de amor entre Helen Edington e Manoel Andrade, que viveram em Valença - Bahia, no final do século 19 e começo do século 20. A partir de memórias remotas, Arlete Soares inventa o diário da avó inglesa e nos convida a imaginar paisagens e afetos.

"Comecei a escrever esse livro há quase 30 anos. Minha mãe sempre falava que eu puxei a minha avó quando fazia algo que ela não gostava. Minha avó morreu em 1910 e eu levei 3 décadas para nascer. Fui me interessando por essa mulher que achava tão libertária. Uma mulher inglesa, que veio para uma cidade pequena no interior da Bahia, se apaixona por um pescador do recôncavo e vive uma vida maravilhosa. A minha motivação foi essa", explicou Arlete, ao CORREIO.  Sobre Helen é o primeiro livro de ficção de Arlete Soares (Foto: Laís Machado/divulgação) De fato, a história da avó da fotógrafa é curiosa. Não são comuns histórias de pessoas deixando a metrópole global, como era a Londres Vitoriana do século XIX, quando Helen nasceu, para viver em uma cidade do interior de um país que até bem pouco tempo sequer era independente.

A curiosidade e a fantasia foram essenciais na produção do livro. A falta de documentos e fotos foi motivo para que Arlete Soares ficasse ainda mais encantada por aquela figura. Mais do que isso: tinha a possibilidade de sonhar e fazer com que a sua vida fosse do jeito que ela bem entendesse - e admirasse.

"Comecei a tomar notas quando ia a Valença conversar com pessoas, aquelas senhoras que foram amigas de minha avó, que a conheceram na infância e fui recolhendo relatos do que falavam. Fui anotando nas agendas, pedaços de papel", recorda a escritora antes de dizer que, apesar de ter ficado muito feliz com a experiência, a viagem deve ser única: "Meu primeiro e último livro. Eu não sou escritora, meu ofício é a fotografia. Essa coisa foi para... sei lá...", parou enquanto pensava num argumento e, sem encontrá-los, emendou: "não sou escritora e nem pretendo fazer outro livro!".

Experiente no ramo editorial, Arlete Soares aposta que o futuro dos livros está em torná-los cada vez mais artesanais. Uma tese que parece contraditória, ainda mais em tempos em que a automação e produção em massa é tão valorizada.

Livros artesanais

O paradoxo faz sentido quando Arlete Soares explica sua linha de raciocínio: os livros artesanais se tornam raros, personalizáveis, donos de uma identidade própria. E, dessa maneira, podem se tornar objeto de desejo. 

Dito isso, o encontro dela com o artista visual, editor e serígrafo Flávio Oliveiras se torna algo ainda mais mágico. Flávio trazia a experiência editorial da publicação de "livros de artista"  com o coletivo Sociedade da Prensa, o qual integrava juntamente com os artistas baianos Laura Castro e Tiago Ribeiro, bem como a experiência com o ofício de serígrafo e as pesquisas em tipografia.

O artista morreu em fevereiro do ano passado, aos 38 anos, vítima de coronavírus. Antes de falecer, conseguiu concluir a impressão de 7 exemplares de Sobre Helen - sua última obra em vida. O livro é o primeiro publicado pelo Ateliê de Ofícios, projeto concebido por Flávio e pela arquiteta e designer editorial Cibele Bonfim, que também era companheira de Oliveiras."Tem muito significado, desde antes era um grande encontro editorial. Era o encontro de uma editora antiga, que é a Corrupio, na figura de Arlete Soares, com a editora Ateliê de Ofícios, que estava nascendo", inicia Cibele Bonfim."Hoje ele tem uma importância ainda maior porque ele realmente foi o último trabalho de Flávio em vida. (...) Foi muito trágica, brusca a ruptura. O livro ficou mesmo em estado de luto, muito tempo parado em cima da mesa, coberto por plásticos, aberto para ser montado. Ele conseguiu terminar de imprimir tudo na serigrafia e depois de 6 meses continuei o trabalho com outros editores, artistas gráficos, serígrafos que eram parceiros de trabalho", completou Cibele. Cibele Bonfim e seu companheiro, Flávio Oliveiras, com uma mesa na Sociedade da Prensa (Foto: Jaya Cósmica) A fala dela mostra que o livro, apesar de ter saído da cabeça e mãos de Arlete Soares, foi um projeto coletivo. Feito a muitas mãos, de carne, osso, sangue, veias e emoções.  Até por isso, fazer o lançamento num momento em que as máscaras começam a cair e as pessoas podem voltar a se reencontrar presencialmente é, acima de tudo, uma ode à memória de Oliveiras - que tanto gostava de estar no meio de gente e de colocar tirar colocar ideias no papel, no sentido mais prático e poético da frase.  Cibele Bonfim e Arlete Soares (à frente) conversam com a curadora editorial de Sobre Helen, Goli Guerreiro (Foto: Flávio Oliveiras/divulgação) Além do lançamento do livro, que custa R$ 120,  haverá projeção externa dos curtas Sobre Helen - Fotobiografia Arlete Soares, de Goli Guerreiro e Laís Machado e Carrego nas Mãos o meu Saber, dirigido por Marcelo Pinheiro, da Apus Filmes. 

O filme mostra a pesquisa de Flávio nos ofícios gráficos, o resgate dos fazeres manuais e tipográficos, seu trabalho como editor, produtor de feiras e serígrafo, além do legado que deixou no bairro do Santo Antônio, no Centro Histórico de Salvador, onde nasceu e se criou. Também estará em cartaz no Oliveiras a exposição FLOS: As Artes Gráficas de Flávio Oliveiras.