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Afinal, os holandeses fizeram o Dique? A história acaba de ser revelada


 

Mapa recém-descoberto se torna o mais antigo sobre Salvador, e remonta a Invasão Holandesa, desvendando o mistério da autoria do Dique do Tororó

  • Da Redação

Publicado em 23/07/2022 às 06:00:00
. Crédito: Imagem: Cortesia Instituto Flávia Abubakir

Nem adianta procurar no Google, pois não tem nenhuma menção à história de um tal Joos Coecke, o mais "novo" personagem da história da Bahia. É bem possível que nem aquele professor de História do cursinho do Enem saiba quem é. Este holandês que passou pouco menos de um ano na Bahia é o autor do primeiro 'Google Maps' de Salvador já descoberto. Reparem bem para o mapa em destaque, pois ele será nosso GPS até o final do texto. Além de assumir o status de ‘foto’ mais antiga da capital baiana, este mapa do Centro Histórico, feito em 1624 e descoberto num livreiro antigo na Holanda, acaba de esclarecer um dos maiores mistérios do universo e da Bahia, o que dá no mesmo: foram os holandeses que fizeram o Dique do Tororó? 

A resposta vem na melhor melodia paradoxa de uma canção tropicalista. Sim e não. De fato, os holandeses fizeram um dique na época que invadiram nossa terra, em 1624. Contudo, o telefone sem fio histórico foi mudando as versões e a autoria holandesa caiu nas águas escuras do Tororó. Vamos novamente ao mapa recém-descoberto. Está vendo a faixa azul atrás do Centro Histórico? É justamente o dique que os holandeses fizeram, onde hoje é a Baixa dos Sapateiros, aproveitando o afluente do Rio das Tripas. Uma construção feita bem antes do Tororó, diga-se de passagem.

Só é possível ver o Dique do Tororó em mapas a partir do século 18, feito pelos portugueses também com propósito de proteção, mas com aproveitamento do Rio Lucaia. Já o mapinha holandês é do século 17.

Agora, adivinha quem projetou e fez (em menos de um ano!) este primeiro dique soteropolitano?  Ele, o próprio Coecke, um engenheiro militar que estava nas embarcações holandesas que invadiram Salvador, em 1624. O projeto foi feito para manter o fundo do Centro Histórico protegido contra as tentativas de retomada da cidade. Graças a Joos, a primeira capital do Brasil finalmente poderá conhecer sobre uma invasão que se tornou um evento global, mais importante até que a tomada holandesa em Pernambuco, apesar de poucos registros no país. Tudo isso graças ao seu mapa. Vamos explicar esta ocupação mais adiante, para tristeza dos irmãos pernambucanos.

“Temos agora o retrato mais antigo da cidade e de muito poder histórico. Podemos, finalmente, entender Salvador no ano da ocupação holandesa (1624/25) e das transformações na capital. Apesar deles ficarem pouco tempo, os holandeses construíram um dique que gerou, durante séculos, controvérsias se a construção foi feita ou não. Alegavam que eles não tiveram tempo para fazer, mas fizeram. De quebra, ainda tinha um mito que a obra se tratava do Dique do Tororó, e agora sabemos que foi outro bem mais antigo”, disse o historiador Pablo Magalhães, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob).

Magalhães viajou até a Europa, onde foi encontrada a relíquia baiana, para ver pessoalmente o Atlas com 80 mapas antigos, incluindo o de Salvador, adquirido pelo empresário Frank Abubakir, idealizador do Instituto Sociocultural Flávia Abubakir, no Corredor da Vitória. Com a planta da cidade e novas referências, Magalhães e a pesquisadora da USP Lúcia Furquim Werneck, que ainda está na Holanda, conseguiram ampliar o leque de estudos e ganharam novos rumos na busca por outros documentos no Museu Nacional de Amsterdã que tenham relação com a invasão holandesa. Já foi possível, inclusive, saber mais sobre Joos Coecke, o mapa e o ‘Dique das Tripas’. Na primeira imagem, o dique dos holandeses. Na segunda, uma reprodução de Salvador antes da invasão, em 1624, com o Rio das Tripas passando longe (Imagem: Cortesia Instituto Flávia Abubakir) “Pelo que podemos apurar até o momento, Joos Coecke nasceu na Zelândia, uma das sete províncias holandesas da época. Ele nasceu por volta de 1587 e alegou ter 38 anos quando esteve em Salvador”, conta Magalhães, que descobriu mais. “Esse mapa de Joos não é um trabalho de artista e foi pensado apenas para ser entregue às autoridades na Holanda (o mapa mede 41,5 x 54 cm). Era um registro técnico que necessitava de uma maior veracidade, pois precisava informar aos seus superiores sobre o andamento das obras de defesa. Nestes documentos encontrados, os invasores holandeses afirmavam que estavam enviando constantemente mapas de Salvador para Amsterdã. Era um controle, né? Encontramos este em perfeita condição”, completa.

A obra do ‘Dique das Tripas’ também apresenta detalhes curiosos. Na época, os holandeses não pretendiam sair de Salvador. Queriam, de fato, ficar aqui permanentemente. Para tanto, precisavam proteger o Centro Histórico, praticamente a única zona urbana na época. O centrão comercial. Os muros foram fortificados, mas era preciso guardar bem os fundos, com o devido “lá ele”, para evitar possíveis ataques e tentativas de retomada pela retaguarda. Foi aí que Joos Coecke resolveu, a partir de uma série de casas demolidas, aproveitar este material para fazer as recusas do Dique. 

“Foi uma engenharia apressada, mas o mapa mostra descrições detalhadas de uma obra bem elaborada. Mesmo depois da expulsão, este Dique ainda fica anos servindo como defesa de outros ataques, até ser aterrado no século 19”, revela Magalhães.

Um mapa de Salvador de autoria do português João Teixeira Albernaz, que retrata o Centro histórico pré-invasão holandesa, mostra o Rio das Tripas bem semelhante a uma tripinha, mais afastada da zona urbana. Apesar da planta de Albernaz retratar um período antes de Joos, a publicação foi em 1630, como uma reprodução de retratos mais antigos destruídos com o tempo. Isso deixa o registro holandês ainda mais importante, pois é o único da época feito in loco, em ‘tempo real’ que sobreviveu ao tempo. 

Rebarba pernambucana Chegou a hora da polêmica. Se já existe conflito com os irmãos pernambucanos sobre quem tem o melhor Carnaval e São João, a rivalidade nordestina acaba de ganhar mais um embate: a primeira opção da Holanda sempre foi Salvador e só se contentaram em invadir Pernambuco porque acabaram expulsos daqui. Pronto, falei.

Nossa capital era muito mais importante que Recife ou Olinda, com todo respeito. Inclusive a invasão holandesa em Salvador foi o primeiro grande evento global, como a invasão russa na Ucrânia, mas sem internet.  Historiador baiano Pablo Magalhães esteve com o mapa e se surpreendeu com o achado (Foto: Acervo pessoal)  “Salvador era uma cidade cosmopolita, a maior do Atlântico Sul na época. Então, tudo passava por Salvador. A rota das índias obrigatoriamente passava por Salvador e depois seguia para a Ásia. Todo um fluxo global já circulava por aqui. Diria mais. O episódio da ocupação holandesa na Bahia é o primeiro episódio que teve uma repercussão global na história. Salvador era o porto do Atlântico Sul invadido. Reverberou até na América do Norte, inclusive com notícias registradas até no México”, garante Magalhães.

Afinal, que diabo a Holanda queria aqui? A resposta é a mesma da invasão em Pernambuco: açúcar. Na época, o Brasil era um grande exportador do produto, em formato mascavado, para os países baixos, que recebiam a versão bruta e refinavam para o consumo. Contudo, a Espanha resolveu cortar a exportação, uma pancada para a Holanda, que importava mais de 50 mil caixas todo ano.

Oxe, Espanha mandando no que o Brasil exportava? Isso mesmo! Nesta época, estávamos sobre o domínio espanhol, um período conhecido como União Ibérica. Portugal e suas colônias estavam sob a ‘tutela’ dos espanhóis. 

Para evitar este prejuízo, a Companhia das Índias Ocidentais, praticamente uma grande empresa de exportação holandesa, resolveu fazer um panfleto e distribuir para sua população com o título: “motivos para tomar da Espanha a terra do Brasil”. Portanto, foi uma invasão anunciada.

No dia 8 de maio de 1624, os holandeses entraram na Baía de Todos os Santos e atracaram no Porto da Barra com 26 navios, 450 canhões e 3.330 homens. A turma subiu a ladeira da Barra e foi marchando até o Centro. Entre eles, Joos Coecke. Segundo documentos da época, Salvador tinha apenas 80 soldados protegendo a cidade. Com a invasão consolidada e sem grandes resistências, o engenheiro pôde desenhar mapas e criar o tal Dique das Tripas. Na época, cerca de 350 mil caixas de açúcar da capital também foram enviadas para a Holanda. 

“Por que esse mapa é importante? Porque ele está inserido em um período de grandes transformações. No século 17, a cidade de Salvador destacava-se não só por ser a capital da América Portuguesa, mas também por ser um centro de referência política e econômica. O porto de Salvador liderava as exportações de açúcar, inclusive ultrapassava até mesmo Pernambuco”, conta o historiador Rafael Dantas. “Esse mapa é interessante porque a gente percebe que a cidade estava literalmente fortificada. De um lado, uma proteção pela Baía de Todos os Santos. Uma proteção natural. E em outro lado uma proteção pelo dique. O mapa é uma das grandes descobertas dos últimos anos, que lança luz para novas pesquisas nesta área”, acrescenta. 

Outro fato curioso é que o mar parece chegar bem próximo da muralha natural que separa as cidades Alta e Baixa. Não é fake. Na época, ainda não existia o aterramento para a construção do comércio. O mar, de fato, chegava até ali. O mapa também prova que a Holanda conseguiu fortalecer Salvador como nunca os portugueses haviam conseguido. 

A invasão, apesar de intensa e com grandes planos econômicos e estruturais do lado holandês, a Espanha resolveu contra-atacar para retomar Salvador, uma importante rota comercial para deixar na mão inimiga. Com uma das maiores expedições armadas da época, os espanhóis chegaram à capital no dia 22 de março de 1625 com 52 navios e 12 mil homens, despachando a Holanda daqui. Joos e o mapa foram juntos. 

Leia o artigo: Um mapa, o dique, nossa cidade

Os holandeses ainda tentaram invadir outras vezes, mas sem sucesso. Acabaram optando por invadir Pernambuco, em 1630, onde ficaram até 1654. Neste tempo,  Salvador se tornou uma importante fortaleza, por ironia do destino, se aproveitando das próprias defesas construídas pelos holandeses, que só conseguiram uma nova invasão soteropolitana em 2014, na Copa do Mundo de futebol, tomando o Centro Histórico e todas as nossas cervejas. 

Brincadeiras à parte, o mapa acabou rodando o mundo. “Após expulsão, Joos serve na África, por volta de 1634. O atlas vai parar nas mãos de um capitão que serviu com Coecke. Posteriormente, com seu filho, um intelectual holandês, Thomas Beverline. Ele acaba vendendo toda sua biblioteca para uma família inglesa e o mapa vai junto para Inglaterra, onde fica durante 150 anos. Depois, o atlas mostra uma nova venda em 1882, para a América do Norte. Só depois ele retornou para Holanda e o Frank encontrou, em 2001, num livreiro antigo”,  descreve Pablo Magalhães. O atlas tem todos os registros citados. Frank Abubakir passou 20 anos tentando um mapa da de Salvador antigo. Quando conseguiu, descobriu que era muito mais raro do que imaginava (Imagem: Reprodução/Ireno Figueiredo) Frank Jones O mapa foi adquirido pelo empresário e Indiana Jones de materiais raros da história da Bahia, Frank Abubakir, presidente do conselho da empresa química Unipar. Contudo, o namoro é antigo. Há 20 anos que Abubakir tenta adquirir o mapa, mas o antigo dono relutava em vender. “Gosto de coisas singulares e o mapa sempre me chamou atenção, mas era uma perspectiva bem mais humilde de um colecionador. Veja que o atlas ficou sem vender todos estes anos, pois o mapa parecia apenas mais uma entre as outras. Ninguém percebia a importância dela, até eu conseguir comprar e descobrirmos seu valor histórico”, conta Frank.

“Outro aspecto que chama atenção é a singularidade do mapa. Não era uma reprodução, muito comum nos mapas descobertos da época. Era normal o artista fazer uma viagem exploratória e pintarem anos depois o local. Então, encontramos muita coisa fantasiosa nesta busca de materiais raros. Esta peça foi feita no período, enquanto os holandeses estavam em Salvador”, celebra Frank. Abubakir agora pensa em trazer o mapa de volta à capital baiana, mas não será uma tarefa a curto prazo. O Instituto  Flávia Abubakir está negociando uma parceria com o Arquivo Público holandês para aprofundar mais o assunto.

“Se eu pudesse, o mapa já estaria em Salvador para todos contemplarem, mas precisamos de mais tempo de estudos. Quero compartilhar este achado com todos”, explica Frank sobre o mapa continuar na sua casa, na Suíça. O mapa foi um pontapé inicial para mais estudos sobre a época de uma Salvador holandesa.  A pretensão é que o primeiro Google Maps da capital venha para a Bahia em 2024, ano em que a invasão holandesa completará 400 anos.  

Instituto Sociocultural Flávia Abubakir abre seu acervo para pesquisadores

Empresário e amante de relíquias históricas da Bahia, o empresário Frank Abubakir, junto com sua esposa Flávia, aprendeu com várias gerações a importância histórica de cada item antigo. Ele nem se incomoda com o valor da coisa, mas a sua importância e singularidade. E, enquanto o mapa mais antigo de Salvador não pega o Atlântico e retorna às suas origens, seu instituto promete disponibilizar os documentos encontrados e o mapa com todos os seus detalhes de forma digitalizada, no site do Instituto Sociocultural Flávia Abubakir, criado em 2021 para abrigar e conservar todo o acervo adquirido por Frank de sua família. 

O lugar do instituto físico fica no Corredor da Vitória, em frente a igreja, mas o acervo está passando também por uma digitalização para compartilhar com pesquisadores interessados na história da Bahia. “O acervo mescla itens de diversos períodos da iconografia baiana. Flávia e Frank, ao constituírem o instituto, amplificam a ideia de compartilhamento do acervo. Os colecionadores são cada vez mais escassos e o instituto faz o papel de guardar esta história. Nós temos também outras áreas que abraçamos, como o incentivo à cultura, adotamos a praça no Largo da Vitória e apoiamos o Centro Social de Saúde Esmeralda da Natividade, que promove atendimento médico e odontológico gratuito”, disse  Ângela Ferreira, diretora do Instituto Flávia Abubakir. Ângela Ferreira, diretora do Instituto Flávia Abubakir, é a guardiã de diversas raridades sobre a história da Bahia (Foto: Divulgação) Para fazer as consultas, o interessado precisa fazer um cadastro no site do instituto (https://www.institutoflaviaabubakir.org/formulario), que está digitalizando todo o acervo. Depois, o usuário recebe um login e pode procurar no site. O acervo tem uma biblioteca com mais de 3,5 mil livros raros, desenhos, esculturas, gravuras, fotos, mapas, entre outros. Somente no site, 8.554 mil peças foram catalogadas e digitalizadas, como um livro de Maurício de Nassau, datado de 1659. 

Sobre a vinda do mapa, ainda teremos que esperar um pouco, pelo menos no formato físico. “Vamos amadurecer e consolidar mais essa essa pesquisa antes do mapa retornar para Salvador. Precisamos de mais pesquisa, mas a ideia é disponibilizar o mapa através do nosso software e site. Esse mapa vai integrar a coleção, mas inicialmente de modo virtual. Vai estar a imagem lá, os dados deles. Estamos sedimentando ações para ele retornar em 2024, no aniversário de 400 anos da invasão”, prevê Ângela. 

“Ainda precisamos decupar muita coisa, traduzir muitos documentos. Alguns personagens nunca existiram dentro da história do Brasil, mas surgiram a partir do mapa. Estamos vivenciando, pela primeira vez, a versão holandesa sobre a invasão de Salvador. O mapa é muito rico em história e dados”, completa.