Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Colégio estadual guarda 116 estudantes mortos pela violência crescente de Salvador
Bruno Wendel
Publicado em 2 de setembro de 2024 às 05:00
“Um já morreu por conta do tráfico, outro pela polícia”, diz um aluno de 15 anos, ao recordar do fim trágico de dois colegas de sala. “É triste, mas fazer o que se eles quiseram entrar nesta vida?”, lamenta outro aluno do Colégio Estadual Rubén Dario, localizado na Avenida San Martin, em Salvador. A instituição tem um “arquivo morto” com 116 pastas de estudantes, entre 14 e 20 anos, vítimas da violência urbana em Salvador nos últimos dez anos. E devido aos territórios conflagrados, somente neste ano, dois colégios estaduais não funcionaram e pelo menos outras 10 unidades tiveram as aulas interrompidas parcialmente pelo “toque de recolher” – todas em regiões próximas ao Rubén Dario – e 42 escolas municipais não tiveram aula.
A tragédia foi mostrada pelo CORREIO nas edições dos dias 10, 11, 24 e 25 de agosto. “Fico triste com uma ‘parada’ dessa, uma situação que a gente pode e não pode controlar, vai da índole da pessoa. Os dois colavam com o pessoal do movimento (tráfico), subiam e desciam com essas amizades. Conhecia os dois há bastante tempo e até hoje fico baqueado”, diz um aluno do Rubén Dário, onde estudam jovens do Ensino Fundamental II, etapa da Educação Básica que compreende do 6º ao 9º ano (antigamente 5ª a 8ª série).
O colégio está na Avenida San Martin, uma das mais movimentadas de Salvador. A via corta os bairros de São Caetano, Fazenda Grande, Fazenda Grande do Retiro, Alto do Peru, Santa Mônica e Curuzu – todos territórios conflagrados, disputados pelas duas maiores organizações criminosas em atuação na Bahia: o Bonde do Maluco (BDM) e o Comando Vermelho (CV).
Os dois estudantes lembrados pelos colegas como vítimas da violência no entorno do colégio foram mortos em um período de um ano, entre 2024 e 2023. Um deles foi Iago, baleado na localidade de Barro Branco, no Alto do Peru. “Iago estava parado na esquina. Os amigos dele conseguiram correr, mas ele ficou parado e a polícia atirou”, contou um colega da vítima. Segundo o rapaz, Iago foi morto durante uma operação policial.
O outro estudante que veio a óbito foi identificado como Murilo. Ele foi surpreendido por um “bonde” (grupo de homens armados) durante invasão à área do grupo rival na Fazenda Grande do Retiro. “Murilo morava na Fonte do Capim e morreu lá mesmo. Eles não avisam quando vão descer. Viram e o mataram”, conta outro colega da vítima.
Os dois casos somam-se aos outros 114 que foram citados em um vídeo institucional da Secretaria Estadual do Trabalho, Emprego, Renda e Transporte (Setre), feito pelos próprios alunos do Rubén Dario no ano passado, ao qual a reportagem teve acesso. “A gente fica chocada. É triste saber que a maioria tinha envolvimento, porque tiveram outras oportunidades, inclusive apresentadas em sala de aula, além da oportunidade de curso, mas eles preferiram entrar nesta vida e acabaram se afundando”, opina uma jovem, novata no Rubén Dario.
Do dia 1º de janeiro a 7 de agosto deste ano, foram 53 pessoas mortas pela violência urbana nos quatro bairros que cercam a instituição, segundo os dados do Instituto Fogo Cruzado. A região que registrou mais óbitos foi a Fazenda Grande do Retiro, com 24 ocorrências. Um deles foi o de Mateus Santiago dos Santos, de 22 anos, no último dia 07. Ele estava com um amigo quando foi baleado por dois homens numa moto na Rua Candinho Fernandes. O bairro registrou também 31 tiroteios e 21 feridos.
116 mortes
O drama no Rubén Dario abordado em vídeo, chamado Sonhos Roubados, faz parte do projeto Força Jovem, do Programa Juventude Produtiva da Setre, e conta com a participação de professores, entre eles Eduardo Marques, que está há cinco anos na instituição. Entre os 116 mortos, quatro foram seus alunos. Um dos casos ele detalhou em entrevista concedida ao CORREIO. “Esperei para fazer o teste. Ele ia fazer numa quarta, mas morreu na terça. Eu já perdi uns quatro para o tráfico”, declara.
Segundo ele, o rapaz era acima de qualquer suspeita. “Na escola, era uma pessoa comum, magrinho, tranquilo, calmo, sereno. Morreu dando um tiro em polícia. Ninguém sabia que ele era envolvido. Eu, por exemplo, sempre fui um professor próximo, nunca soube que esse jovem tinha ligação com o tráfico. Então, para nós, era um rapaz bom. É difícil você fazer essa relação entre escola e aluno. Às vezes a pessoa tem envolvimento lá, mas na escola não tem nada”, diz Marques.
A gravação foi realizada no segundo semestre do ano passado, postada na plataforma de compartilhamento no dia 19 de dezembro e contava pouco mais de 400 visualizações até sexta-feira (9). A produção tem quase 15 minutos e traz o olhar da comunidade do Rubén Dario diante dos conflitos armados em seu entorno.
O CORREIO sabia da existência do “arquivo morto” há cerca de dois anos. Desde então, a reportagem buscava o acervo. Há dois meses, a reportagem tomou conhecimento do vídeo institucional, por meio de um dos alunos. O “arquivo morto” é mostrado a partir da participação do então diretor da unidade, o professor Antônio Pimenta, que aparece ao lado de 20 pastas empilhadas. À medida que mostra parte do acervo, ele lamenta: “Muitos vieram aqui na sala conversar, brincar, outros que já tinham um comportamento mais acuado, mas que infelizmente tiveram o mesmo destino: foram mortos. Mortos por um sistema que exclui principalmente a juventude negra da possibilidade de sonhar”, diz o professor na gravação. As 116 pastas estão numa sala do arquivo (geral) da escola, distribuídas em gavetas com outros documentos.
A produção, exibida em outras secretarias no segundo semestre de 2023, teve o apoio da Secretaria de Educação (SEC), do Centro Juvenil de Ciência e Cultura (CJCC), do Centro de Educação Especial da Bahia (CEEBA), da Associação Baiana Estudantil Secundarista (ABES) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). O objetivo foi coletar depoimentos de professores e estudantes para elaboração de projetos pedagógicos em mais 120 unidades de ensino do estado. Um dos temas foi a violência no ambiente escolar.
Mais reflexos
De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia (APLB), a morte de tantos alunos não é um fato exclusivo do Rubén Dario. “É uma situação de muitas escolas em bairros tidos como violentos. Sou professora do Colégio ACM e toda hora a gente perde um aluno na violência no Vale da Muriçoca, Engenho Velho da Federação”, declara uma das dirigentes do APLB, Marilene Betros, que trabalha no Colégio Estadual Antonio Carlos Magalhães, na Avenida Vasco da Gama.
Segundo Marilene, “isso faz parte do processo que enfrentamos de uma crise institucional, uma situação preocupante em todos os bairros de Salvador”. “O desemprego, a violência, a perda dos valores, são fatores que contribuem para o problema”. Ela finaliza dizendo que as instituições de ensino vêm cumprindo a sua função de “papel impulsionador”. “A Constituição diz que temos que transformar esses alunos em cidadãos partícipes dessa sociedade. Então, se pode imputar tudo isso à escola”.
Em entrevista já concedida ao CORREIO, o professor de História do Rubén Dario, Eduardo Marques, pontou a importância da atuação da família dos jovens. “Nós já estamos fazendo a nossa parte, mas os pais precisam zelar pelos filhos em casa. Esses alunos que vêm para cá, influenciados com essas coisas, não é na escola que ele aprende isso. É na rua dele que já se tornou normal o tráfico de drogas”, declarou Eduardo.
Sem aulas
E o clima de guerra em Salvador reflete em todo ambiente escolar. Devido aos confrontos diários entre facções ou em decorrência de operações policiais, de janeiro deste ano até o último dia 26, 42 escolas municipais tiveram que suspender as atividades, “por um ou quatro dias, dependendo da região”. “Em decorrência da sensação de insegurança, afetando 13.421 alunos, que ficaram sem aula”, diz nota a Secretaria Municipal da Educação (Smed).
Já nas unidades estaduais a situação não é diferente. Segundo a APLB, neste mesmo período, pelo menos estudantes de dois colégios estaduais foram prejudicados pela falta de segurança. “O Noêmia Rêgo ficou três dias seguidos sem funcionar devido ao reflexo dessa violência”, disse Rui Oliveira, presidente do APLB, em entrevista em julho deste ano, ao citar o Colégio Estadual Professora Noêmia Rego, no bairro de Valéria.
No mesmo mês, pelo menos 12 colégios estaduais tomaram conhecimento de um “toque de recolher” dado pelo Comando Vermelho na noite do dia 18. Em algumas unidades, diretores suspenderam as aulas totalmente ou parcialmente. "Abriram, mas não teve aluno", disse na ocasião um professor à Coluna Insegurança.
Tudo isso porque a facção carioca, que tomou a Fazenda Grande, encontra resistência de alunos que são Bonde do Maluco nas regiões próximas. Os colégios que receberam a notícia foram: Prof. José Barreto de Araújo Bastos, Luiz Pinto de Carvalho, Des. Pedro Ribeiro, Carlos Alberto Cerqueira, Prof. Edson Carneiro, Dom Avelar Brandão Vilela, Dois de Julho, Profª Natalia Vinhaes, Ruben Dario, Pierre Verger e Dantas Júnior. Já a Secretaria da Educação do Estado (SEC) negou.
No dia 08 de maio, o Colégio Estadual Dois de Julho, localizado na Fazenda Grande do Retiro, teve as aulas suspensas, após o assassinato de um dos estudantes da instituição no bairro. Anderson de Carvalho Cachoeira tinha 15 anos, estava fardado e usava uma mochila quando foi atacado a tiros na Rua Mello Moraes Filho.
Silêncio
Desde o dia 2 de agosto, quando a primeira matéria sobre o assunto foi produzida, que a reportagem busca um posicionamento da Secretaria de Segurança Pública (SSP/BA), da Secretaria Estadual de Educação (SEC/BA) e da Polícia Militar da Bahia (PM/BA) sobre o assunto. Foram enviados 13 e-mails para cada instituição, inclusive nas datas 28 e 30 de agosto. Até agora, não houve resposta.