Perna Fróes foi uma multidão numa pessoa só

Por Lucas Fróes

Publicado em 13 de julho de 2023 às 19:08

Perna Fróes foi uma multidão numa pessoa só. Sua personalidade expansiva e comicamente exagerada fazia sua presença ser marcante. Sua trajetória como pianista e arranjador, com participação em grandes momentos da música brasileira, foi seguida por uma carreira de médico, às vezes com as duas se misturando.

Antonio Renato Freire de Carvalho Fróes ganhou o apelido “Perna” dos colegas de sala, depois de quebrar a perna e ter que engessá-la. Mas a fama de perna-de-pau no futebol, que ele mesmo gostava de alardear, ajudou a fixar o apelido que adotou.

Perna Fróes, para mim apenas Tio Perna, viveu o alvorecer de sua juventude no início dos anos 1960, período de vanguarda artística em Salvador. Numa rara jornada, ele e todos os seus amigos com quem iniciou junto a carreira conquistaram grande sucesso.

Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé viraram instituições da cultura brasileira. Orlando Senna, Emanoel Araujo, Capinam, Paulinho Boca de Cantor, Edy Star, Roberto Sant’Ana, Djalma Corrêa, Tutty Moreno, Tuzé de Abreu e os irmãos Perinho e Moacyr Albuquerque também tornaram-se nomes importantes das artes no Brasil.

A casa de sua família, na Ladeira dos Aflitos, 59, foi ponto de encontro do grupo de futuros tropicalistas e doces bárbaros. No piano que foi de seu avô, o maestro Silvio Deolindo Fróes, e no qual madrugava tocando, ensaiou com Bethânia a música “Sol Negro”, que Caetano compôs para ela e Gal cantarem em contraponto, o que fizeram dois meses depois no espetáculo “Nós, por exemplo…”, que lançou o grupo em agosto de 1964.

Gil, Bethânia, Djalma Corrêa, Caetano, Perna, Gal e Roberto Sant’Ana em ensaio no Teatro Vila Velha Crédito: Acervo Pessoal

Também na juventude, foi organista na igreja de São Bento, emendando melodias de rock’n’roll em meio aos temas litúrgicos da missa, numa traquinagem que fazia ele e o amigo Raul Seixas se divertirem. Com a confiança de Bira (depois famoso por sua risada nos programas de Jô Soares), começou a se apresentar na noite de Salvador.

Com Tom Zé, seu colega na Escola de Música da Universidade da Bahia, e com quem tinha uma personalidade parecida, fez parceria na composição dos sucessos “Menina, amanhã de manhã” e “Se o caso é chorar”.

Por sua militância estudantil, Perna ganhou outro apelido, “Nikita”, numa referência ao presidente soviético Nikita Khrushchov, e chegou até a ser preso pela repressão. Mais tarde, em 1981, foi testemunha do Atentado do Riocentro, e fez um relato publicado no dia seguinte pelo jornal O Globo.

Ele me contou que, quando estacionou o carro, achou estranho que estivesse tudo escuro. Foi quando um agente veio até ele e pediu que se retirasse dali. Perna retrucou dizendo que tinha que trabalhar, mas o homem foi mais incisivo: “Meu amigo, é melhor você ir embora porque isso aqui vai virar um inferno”. Logo em seguida, o Puma explodiu ao longe e pedaços chegaram perto dos dois. O plano dera errado, e o agente sumiu no breu. Perna acelerou e saiu dali.

Gal Costa e banda no show do Riocentro

No primeiro show de Gil e Caetano após a volta do exílio, em 1972, Perna Fróes estava ao piano. Gravou o disco “Expresso 2222”, com Gil, e em seguida o disco ao vivo de Caetano e Chico Buarque. Nas gravações do LP “Araçá Azul”, viveu uma experiência artística singular. “Íamos para o estúdio sem ter nenhuma noção do que a gente ia fazer. Criávamos tudo na hora”, me contou.

"Back in Bahia" no primeiro show de Gil e Caetano na volta ao Brasil

Continuou tocando com Caetano até a segunda metade dos anos 1970, quando assumiu a direção musical de Gal Costa nos discos “Gal Tropical” e “Aquarela do Brasil”, período de enorme sucesso da cantora. Foi de Perna a ideia de fazer o duelo entre a voz de Gal e a guitarra em “Meu nome é Gal”.

"Meu nome é Gal no Festival de Montreux"

Numa peregrinação pelos bares soteropolitanos, que terminou de madrugada em Amaralina, Perna explicou para Erasmo Carlos e Roberto Sant’Ana como tocavam cada um dos pianistas dos diferentes estilos da música brasileira.

Depois da aula, o Tremendão, que acabara de o conhecer, decidiu na hora convidá-lo para gravar seu próximo LP, “1990 — Projeto Salva Terra!”, em 1974. Na dedicatória que escreveu na capa do disco, chamava-o de “perna e braço” e mandava beijos de fã.

Perna Fróes nas gravações do disco de Erasmo Carlos Crédito: Acervo Pessoal

Musicalmente, Perna se dizia discípulo de Pierre Boulez, acreditando no acaso controlado. Reclamava da própria voz, mas conseguia cantar a dificílima “Oh! Darling”, dos Beatles. Na medicina, usava como máxima uma frase de Brecht: “Nada que é humano me dá nojo, exceto a violência”.

Sua memória remetia à primeira vez que seus dedos tocaram nas teclas de um piano, pelas mãos da professora Nair Porto, mãe do amigo Mauricio, um dos homenageados por Caetano na canção “Gente”.

Lembrava-se de ter visto, aos seis anos, seu pai chorando após ouvir no rádio a derrota do Brasil na final da Copa de 1950. O pai nunca mais quis acompanhar futebol, mas Perna tornou-se um grande rubro-negro, frequentando o Maracanã nos áureos tempos da Era Zico.

No último dia 1º. de julho, antes do jogo Flamengo x Fortaleza, o telão do Maracanã exibiu seu nome durante o minuto de silêncio.

Com sua camisa do Flamengo, em 2022 Crédito: Acervo Pessoal

Didático e enfático, fazia hilárias e exageradas comparações. Para nos explicar sobre a capacidade do corpo de absorver cálcio, recorria a uma analogia com o telescópio Hubble! Já um pequeno comprimido de vitamina C se transformava em “quatro caras de 38 na mão se revezando em turnos” para defender o sistema imunológico.

Para acender a luz, mais comédia: “Eu não sou morcego pra enxergar no escuro”. Mas para varar as madrugadas, se declarava um morcego. No seu bordão, alguém cansado estava “mais quebrado que arroz de terceira”. E alguém muito mau era “o cão do quinto livro”.

Em 2001, foi ao Programa do Jô integrando a banda do cantor Orlandivo. Quando Jô Soares descobriu que Perna era geriatra, chamou-o imediatamente para a entrevista, e ele roubou a cena, transformando o papo numa surreal conversa aleatória.

Em sua mesa no consultório Crédito: Acervo Pessoal

Em 2020, no início da pandemia, trabalhando como geriatra, Perna contraiu Covid e foi internado. Atendeu minha ligação, no quarto do hospital, com uma tosse fortíssima e bradando um “eu não estou morrendo, não”, para ir direto ao ponto. Recebeu alta sem sobressaltos, mas as sequelas da doença debilitaram sua saúde nos últimos três anos.

No dia 5 de junho, foi internado no hospital Casa, no Rio de Janeiro, com insuficiência renal. No dia 16, completou 79 anos e comemorou no hospital. No mesmo dia, postou numa rede social sobre seu estado de saúde. Na postagem, recebeu a solidariedade de Wagner Tiso, Paulinho Boca de Cantor, Ricardo Vilas, Tuzé de Abreu, Roberto Sant’Ana, Paulinho Lima, Rubão Sabino e Victor Biglione.

Mas no sábado, 24, teve uma parada cardíaca e precisou ser entubado. Faleceu dois dias depois.

Nos últimos meses, Tio Perna conversava comigo para passarmos a limpo momentos de sua carreira. Com a sua morte, lacunas permanecerão impreenchíveis para sempre.

Às vezes, as conversas se davam numa tentativa minha de organizar o assunto. Em outras, sua intempestividade era mais funcional, como quando me ligou, no intervalo de seu plantão médico, para me contar sobre sua relação com Gil e Caetano.

Perna dizia que já tinha visto milagres na medicina, e declamava versos de “Milagres do Povo”, de Caetano, para ilustrar. Acreditava numa força maior que rege o universo.

A coragem para exercer a medicina, o que fez com determinação até o fim, mesmo em detrimento de uma carreira consolidada na música, teve inspiração em “Como nossos pais”, de Belchior, pois Perna também achava que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”.

Perna Fróes deixa esposa, filhos, netos, sobrinhos, sobrinhos-netos, irmãos, muitos amigos e a sensação de que uma multidão, e não apenas uma pessoa, foi embora.