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Roberto Midlej
Publicado em 11 de maio de 2025 às 06:00
Já faz algum tempo que a sociedade se manifesta contra músicas que naturalizam o machismo, o racismo ou a homofobia. Luiz Caldas, por exemplo, cedeu aos apelos e excluiu de seus shows a canção Fricote, clássico fundador da axé music. A decisão aconteceu especialmente por causa dos versos “Nega do cabelo duro/ Que não gosta de pentear/ Quando passa na Baixa do Tubo/ O negão começa a gritar/ Pega ela aí”. >
Chico Buarque também não resistiu às pressões do movimento feminista e não canta mais Com Açúcar, Com Afeto, que, se pode ser interpretada como machista, é também inegavelmente romântica. A música fala de uma mulher que faz de tudo para agradar ao companheiro, mas ele teima em sair com os amigos, olhar para outras mulheres e se entregar à bebedeira. E, quando ele volta para casa, ela o espera de braços abertos, apesar de tudo. A posição submissa da mulher fez as feministas pedirem a Chico que não cantasse mais a música e ele prontamente atendeu ao pedido. >
“Êta nega tu é feia/ Que parece macaquinha/ Olhei pra ela e disse/ Vai já pra cozinha/ Dei um murro nela/ E joguei ela dentro da pia”. O leitor é capaz de lembrar que ícone da música brasileira já cantou estes versos? Acredite, mas eles já foram gravados pelo mesmo autor de Super-Homem - A Canção, um hino antimachista e que pede que os homens tenham a sensibilidade das mulheres. Sim, amigos: Minha Nega na Janela, de Germano Mathias, já foi gravada por Gilberto Gil, que, hoje, provavelmente, tem vergonha de ter registrado aquela canção. (E, por favor, ninguém ouse querer “cancelar” Gil porque gravou essa música).>
Mas se machismo, racismo e homofobia se tornaram temas praticamente excluídos do nosso cancioneiro, há outro problema social que insiste em ser o mote de sucessos da música brasileira: a apologia ao álcool. É verdade que não é fenômeno recente. Em 1937, o país já ouvia Festança no Tietê, de Ochelsis Laureano: “Com a marvada pinga/ É que eu me atrapaio/ Eu entro na venda e já dou meu taio/ Pego no copo e dali nun saio”. Mais tarde, a canção ficou conhecida como Marvada Pinga e virou clássico na voz de Inezita Barroso.>
Elizeth Cardoso, uma das grandes vozes da nossa história, cantou “Eu bebo sim/ Estou vivendo/ Tem gente que não bebe/ E está morrendo”. Vicente Celestino conquistou o público com O Ébrio, que deu origem em 1946 a um filme homônimo, estrelado pelo próprio cantor e compositor. “Hoje, porque bebo a fim de esquecer a minha desventura/ Chamam-me ébrio”, cantava Vicente Celestino.>
Mas, por que, passados quase 90 anos desde Marvada Pinga, o país continua venerando o álcool? Talvez, naquela época, a sociedade ainda não atentasse para os males que a bebida trazia. Mas hoje, não há dúvidas: vidas são destruídas pelo alcoolismo, famílias se separam por causa do vício e a violência doméstica tem, inegavelmente, uma relação com o consumo de álcool. Feminicídios são cometidos por homens embriagados. >
Será que não é hora de nos levantarmos também contra a apologia à bebedeira nas canções? E aqui, que fique claro, não se trata de moralismo, nem de uma guerra ao álcool. Não estou pregando que as músicas sejam censuradas pela Justiça nem que se proíba o consumo de álcool. Mas é um convite para que a sociedade reflita: faz sentido, em 2025, ainda tratarmos a bebida alcoólica como a cura para as nossas dores internas, da maneira como as canções propõem? Oitenta anos depois de O Ébrio, ainda vamos insistir em esquecer nossos problemas na mesa de um bar, como sugere a canção de Vicente Celestino?>
Artistas>
E, claro, os artistas também precisam refletir sobre seu papel, afinal a maioria deles tem o público jovem como alvo. Querida Ivete, com todo respeito e admiração que a Bahia tem por você - e até por isso -, sugiro que repense sobre cantar versos como “Vira tequila de uma vez/ Não sabe nem o que é ex” ou “Tem gente que senta pra beber/ Aqui nós bebe pra sentar”, que estão em Cria da Ivete, sucesso recente da musa do axé.>
Mas não vamos culpar Ivete, afinal o universo sertanejo é marcado por canções que veneram a bebedeira. E não é de hoje, tanto que muitas duplas que fizeram sucesso nos anos 1990 já faziam isso. “Segunda-feira, eu vou pro bar/ Terça-feira, eu vou também/ Beber, beber, beber”, canta Leonardo. Gusttavo Lima - aquele mesmo que quer brincar de ser presidente da República - tem uma música chamada Fazer Beber, em que canta: “Se que beber/ Vamos fazer beber agora”. E olha só a ironia: em janeiro deste ano, ele disse estar com problemas no fígado e vai parar de… beber! A banda Aviões do Forró fez sucesso com uma canção chamada “Beber, cair e levantar”.>
A psicóloga clínica Paula Studart Bottó, doutora e mestra em medicina e saúde pela Ufba, faz um alerta: “[Nas músicas] As referências ao álcool costumam ser positivas: beber é mostrado como uma ação divertida, relaxante, que faz parte de momentos agradáveis. Muitas vezes, a bebida aparece associada ao glamour, à celebração e a um estilo de vida desejável. O problema é que, nesse processo, os riscos e danos relacionados ao consumo de álcool são negligenciados ou ignorados”. >
Suscetibilidade dos jovens>
Studart acrescenta que os jovens são mais suscetíveis aos apelos dessas canções: “O cérebro dos adolescentes ainda está em desenvolvimento, o que torna essa faixa etária mais vulnerável a influências externas, especialmente aquelas associadas ao prazer, ao status ou ao pertencimento. Eles estão em processo de formação de crenças sobre si mesmos e o mundo, e, nesse sentido, ainda têm dificuldade de adotar atitudes que contrariem o grupo ao qual pertencem. O desejo de aceitação é muito forte nessa fase”.>
Bruno Cruz, também psicólogo e com mestrado em antropologia, realizou pesquisa sobre o álcool e a construção da masculinidade em territórios rurais. Durante o estudo, notou o quanto a bebida está impregnada na rotina dos jovens e quase sempre acompanhada de músicas. “Na pesquisa, fui a algumas comunidades e vi que ouviam muita ‘sofrência’. Aí, notei que a música era um importante elemento para estudar o álcool”, diz o pesquisador, que destaca a banda Unha Pintada como uma das mais ouvidas entre o público que foi seu objeto de estudo.>
Bruno, no entanto, não vê uma relação tão direta entre a música e o desejo de beber. “A música é um elemento a mais que estimula o consumo de álcool. Há também o problema das relações sociais, além de questões econômicas. A música não interfere diretamente, mas compõe um cenário cultural que está relacionado à bebida”.>
Basta dar um Google e digitar “beber Unha Pintada”. Logo, vai aparecer a canção Eu Quero é Beber, cujos versos são “Eu quero é beber/ Pois se cachaça mata/ Solidão maltrata/ Não para de doer”. Quer outros exemplos da mesma banda? “Eu vou sair/ Beber a noite inteira, vou me embriagar”, canta o vocalista Aldiran Santana em Bebendo e Chorando. “Eu tô fazendo terapia pra esquecer ela/ Além de tá virando cachaça no goela”, canta Aldiran em Vizinhança. >
Nesse último exemplo, ao menos, o eu poético recorreu, além do álcool, a um profissional para curar sua dor de corno. Aí, não há como negar: já é uma baita evolução!>