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Uma noite no Manada: acompanhamos um encontro dos Legendários

Repórter do CORREIO participa de encontro dos Legendários em Salvador e revela os bastidores de um movimento masculino que mistura fé, patriarcado e coach

  • M
  • Moyses Suzart

Publicado em 8 de junho de 2025 às 05:00

Encontro Legendários
Encontro Legendários Crédito: Divulgação

Conhecer os Legendários é como redefinir o que é o homem hétero moderno: um homo sapiens órfão dos tempos em que o patriarcado o deixava no topo da cadeia social, enquanto as mulheres eram relegadas ao papel meramente coadjuvante de espectadoras do sucesso másculo e heroico do provedor machão. Uma receita explosiva que mistura religião, coach, redpill e testosterona exalada em gritos quase primatas: “AHU, AHU!”. Sim, este é o grito de guerra deste movimento que tenta fincar raízes em solo baiano e não disfarça o desejo de retomar um modelo tradicional de patriarcado, embalado por uma estética militarizada e um discurso bíblico seletivo.

O texto poderia, inclusive, já parar por aqui. Mas o CORREIO pagou R$ 139 conto para este repórter acompanhar o 1º Encontro do Manada em Salvador, realizado na Igreja Batista Lagoinha, na Vila Laura, nos dias 30 e 31 de maio. A intenção era conquistar novos seguidores na capital baiana. Entretanto, se depender deste primeiro contato, a missão tem tudo para flopar: cadeiras vazias, pouca empolgação e uma manada quase inteiramente composta por veteranos do movimento, seus familiares e poucos curiosos.

De repórter disfarçado, virei praticamente o único ali que não conhecia nada do grupo — pelo menos na prática. A seita (sim, porque esse ar de segredo e estrutura quase militar faz jus ao termo) é cercada de mistérios, que só são revelados se você, enfim, “atender o chamado e subir a montanha”, como confidenciou um dos legendários, me vendo sentado, sozinho, devorando todos os chocolates Snickers da mesa dos convidados enquanto o evento não começava. Este doce tem um significado especial: eles são alimentos nas reuniões entre os legendários, nos momentos de isolamento na mata.

Com um tom misterioso, ele me explicou que O Manada é uma vertente dentro dos Legendários: espaço/encontros só para homens, afastado de qualquer influência feminina, onde eles se reúnem para vivenciar “provações masculinas”. Ou como eles colocam nas redes sociais, “o que acontece na montanha, fica na montanha”. São retiros secretos e isolados, geralmente em matas, picos ou serras que podem durar dias, com provas físicas intensas, cultos, reflexões e um juramento de fidelidade à “missão” de restaurar o homem como líder, provedor e pilar da família. Tudo isso supostamente inspirado na Bíblia. O versículo favorito? Provérbios 27:17: “Assim como o ferro afia o ferro, o homem afia seu companheiro”. Amém ou lá ele?

O nome Manada faz referência ao elefante, que está presente nos símbolos dos Legendários. É um animal que, segundo a doutrina deles, é vulnerável quando anda só, assim como os homens. O problema é que essa metáfora ignora completamente um dado simples da biologia: na natureza, são as fêmeas mais velhas que lideram a manada. Os machos adultos, esses sim, costumam andar isolados. Sem contar que eles insistem em colocar a palavra manada com o artigo masculino. Um detalhe que passa batido no discurso dos Legendários, mas que denuncia um certo desprezo por fatos que não cabem na narrativa. Ou pior: desprezo pelo protagonismo feminino.

Legandários Salvador
Legendários Salvador Crédito: Moysés Suzart

Voltemos ao meu quase guia dos legendários, que tentava me convencer a ser um ‘homem de verdade’. Para ele, só o fato de comparecer ao encontro já era um forte indício que Jesus me chamava para ser um deles. Um sinal.

“Só de estar aqui, por conta própria (sabe de nada, inocente), já atendeu o chamado de Jesus, o primeiro legendário. Aqui você vira homem de verdade, provedor, herói e protetor de sua esposa neste mundo todo desajustado, onde o homem perdeu seu lugar. Agora é subir a montanha e virar um de nós”, disse o legendário que conheci, muito solicito, pegando na minha mão com força, como se eu ainda fosse uma presa fácil que buscava estar entre eles.

Talvez ele tenha construído minha ‘masculinidade frágil’ por conta do meu perfil pouco atlético, que desvirtua de um legendário raiz que segue um certo padrão: a maioria com barbas longas no melhor estilo viking gospel, cabelo curtinho na régua, além da tradicional camisa laranja coladinha no corpo, acentuando os músculos de quem não falta academia, diferente de mim. Na vestimenta alaranjada, símbolos como a bandeira do Brasil, da Bahia e selos que lembram conquistas de escoteiros.

Na camisa laranjada, também lia-se em letras pequenas nas costas: “Desfrute o caminho”. Mas a pergunta que fica é: para onde esse caminho está levando? Quando o evento começou de fato, com a fala do diretor dos Legendários Bahia, Diego Pitombo, ficou evidenciado que a questão é ainda mais profunda.

“Esse é o primeiro efeito do Legendários em relação ao chamado: te ajudar a conectar com o manual do fabricante ou com o próprio fabricante”, disse Pitombo. Neste caso, quando ele disse isso, se compreende o “manual do fabricante” sendo a bíblia, enquanto o “próprio fabricante” é Deus/Jesus. A intenção é, literalmente, fazer um reboot do homem moderno, reconectando com o tempo em que o macho era o dominador, rústico, viril e servo do senhor cristão. E o dono de sua esposa, claro.

Durante todo primeiro encontro do manada em Salvador, onde foi permitida a presença das esposas e filhos, a mulher sempre foi exaltada, mas como espectadora do chamado de Deus aos seus maridos. Seria injusto de minha parte generalizar, mas o que deu para perceber foi uma ênfase na liderança masculina, sugerindo uma perspectiva tradicional de papéis de gênero patriarcal. Com o consentimento das mulheres presentes, que deram total apoio aos discursos dos pastores da noite.

“Você tem um casamento onde há amor, cumplicidade, onde há paz, respeito, mas talvez falte algo. Eu sinto, no meu coração, que talvez falte a esposa reconhecer que você está debaixo de uma missão, que você entendeu o seu chamado e você se submeteu a essa missão. Quando isso acontece, as peças se posicionam de forma sobrenatural”, disse Diego Pitombo. Neste momento, foi possível ter a certeza do propósito central e do que os legendários pensam da relação homem e mulher. Calma, pois tem mais:

“A partir daí, você tem uma esposa que não vai mais ‘competir’ com você. Você terá uma esposa que não vai mais querer fazer aquilo que é o seu chamado. Na hora que você se posicionar diante do seu chamado, obedecer ao senhor e não atrasar os planos dele, a sua esposa se posiciona num lugar que o próprio manual de fabricantes assegura”, completa Pitombo, com a esposa ao seu lado, dando razão.

O que o discurso deixou no ar é que a submissão feminina é algo espiritual, inevitável e desejável. E está tudo bem para as esposas dos legendários. Existe, inclusive, as Ladies Legendários, que são mulheres que se reúnem para um chá enquanto seus maridos estão no mato.

“Enquanto nossos Legendários sobem a montanha, nós, Ladies e futuras Ladies, nos reunimos para sermos fortalecidas por uma palavra que edifica, cura e inspira”, diz o perfil baiano delas no Instagram, com mais de 20 mil seguidores. Sabe o que é mais curioso? Elas possuem mais seguidores que a página dos Legendários Bahia, com pouco mais de 17 mil.

Contudo, esta pequena curiosidade camufla o crescimento do movimento no país, que vem ganhando adeptos que possuem uma poderosa arma: são influenciadores, como o ex-bbb Eliezer, que já subiu a montanha com o apoio da esposa, Viih Tube.

Segundo o site oficial, cerca de 52 mil homens já subiram a montanha e se tornaram Legendários, espalhados em 13 países e 70 cidades, incluindo Salvador e Feira de Santana. O Brasil inclusive já ultrapassou adeptos dos Estados Unidos e assumiu o status de segundo país com mais Legendários, com 10.128 integrantes, perdendo apenas para a Guatemala, local de fundação, em 2015.

O curioso é que eles não possuem uma estrutura de igreja em si. Inclusive eles dizem que existem igrejas sem Legendários, mas não Legendários sem igreja. É como se uma religião cristã, com estrutura física, pudesse abrigar o movimento, como faz o Alagoinha em Salvador. A montanha é a casa deles. Nos encontros, os interessados em participar só ficam conhecendo o local nas vésperas de acontecer. Na Bahia, o principal evento é o Descobrimento, que ocorre no sul do estado.

O preço do chamado, inclusive, mostra que existe também uma limitação para quem não consegue arcar com os valores dos eventos. Se o CORREIO só pagou R$ 139 neste encontro que vos conto, existem chamados à montanha que podem custar até R$ 81 mil. O de proporção nacional foi em maio, em Curitiba, exclusivo para homens solteiros, que pagaram R$ 1.490,00, podendo dividir em até 10x.

Pelo discurso daquela noite na Vila Laura, ficou também subentendido que o grupo é para homens heteros. “Só vem para o Legendário quem é homem, entendeu? Só quem é homem”, disse Ricardo Bernardes, diretor nacional dos Legendários, enquanto ligava seu computador para a última palestra masculina da noite, com um ar de coach motivacional. Sim, tinha mulheres palestrando, mas apenas para corroborar com a filosofia pregada ali.

Confesso: sou um jovem de 44 anos que foi criado (e beneficiado) pelo patriarcado, mas que se considera um machista em desconstrução. Tento fazer com meu filho o contrário que meu pai, ausente, fez comigo. E, por incrível que pareça, achei interessante a ideia de uma seita só de homens, com o propósito de colocá-lo no seu devido lugar na sociedade. Pena que a execução é equivocada.

O propósito mais digno da palavra de Deus, creio eu, seria uma reflexão sobre a nocividade da masculinidade tóxica na sociedade e como combatê-la. Debater como é possível mudar o fato de 65.961 crianças terem nascido no Brasil, somente em 2025, sem o nome do pai na certidão. Que 11 milhões de mulheres no país criam seus filhos sozinhas, as chamadas mães solo. Sem contar aquelas que ficam em casa, cuidando de tudo, enquanto o homem atende um chamado na montanha.

Enquanto o evento caminhava para o fim, uma borboleta pousou na minha mão e ficou um tempão ali. Para muitos ali, seria um sinal divino. Para mim, foi só um lembrete: era hora de bater asas e me picar dali.