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Larissa Almeida
Publicado em 18 de junho de 2025 às 05:30
Formado no Ensino Médio aos 17 anos, graduado em Direito aos 21 e empossado como juiz antes dos 30. Em menos de dez anos, o baiano Gerivaldo Alves Neiva construiu uma carreira acadêmica e profissional de destaque, que para muitos era a confirmação de que ele era mesmo um menino prodígio, como tanto ouviu na infância. As palavras ainda ressoavam porque, em vez de alegrá-lo, remetia a tempos de angústia. >
É que em Conceição do Coité, no nordeste da Bahia, onde nasceu e cresceu, a avidez pelos livros, a solidão e o fácil esgotamento social sempre foram características que o tornavam diferente e até mesmo vítima de bullying. Só aos 53 anos, com o diagnóstico de autismo, ele entendeu que não havia nada de errado consigo mesmo. >
“Depois de pesquisas, regressões, questionários e tabelas, chegaram à conclusão de que eu tinha altas habilidades, um hiperfoco intenso e uma superdotação. Aprofundando na terapia, concluíram eu preenchia quase todos os requisitos para diagnóstico de autismo de suporte um. Na época, isso me aliviou, mas tornar isso público, agora, é uma libertação”, destaca Gerivaldo. >
As primeiras percepções da ausência de liberdade para se sentir bem sendo quem era ocorreram na infância. Foi naquela época, mais precisamente na década de 60, que Gerivaldo ouviu os primeiros insultos direcionados sua forma de agir, sendo constantemente rotulado de ‘estranho’, ‘esquisito’, ‘CDF’ e ‘sonso’. O refúgio para a falta de traquejo social era a ânsia por aprender. >
“No primeiro ano da escola, eu aprendi tudo: aos cinco anos, me alfabetizei, já sabia ler, já sabia escrever e já tinha aprendido as operações. Quando eu fui para a escola regular, aos 7 anos, a diretora chamou minha mãe logo nos dois primeiros meses e ela estranhou muito, porque eu não abria a boca. A diretora disse a ela que eu não podia ficar naquela série e, por isso, avancei muito”, relata. >
Aos 10 anos de idade, Gerivaldo descobriu uma biblioteca em Irecê, onde passou a estudar. A habilidade para resolver contas matemáticas complexas, que costumava fazer por hobby, tornou ele uma atração no local. Outros estudantes paravam e ficavam ao redor para ver quem acreditavam ser um gênio. O mesmo acontecia no pátio da escola. >
Juiz baiano descobriu autismo na vida adulta
O interesse pela matemática, ao longo dos anos, foi transferido para os livros de aventura e, às vésperas do vestibular, para os livros de filosofia e sociologia. Leitor de Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber e Nietzche, Gerivaldo estava decidido a ser cientista social, mas lhe ocorreu prestar vestibular também para Direito e Economia. Passou nos três cursos e decidiu fazer Ciências Sociais e Direito. No meio do caminho, abandonou os estudos sociais. >
Mesmo com a carreira profissional estabelecida após a graduação, Gerivaldo não aquietou. Quis ser radioamador, astrônomo, artesão e programador, e se dedicou a aprender sobre essas áreas enquanto advogava. Em menos de um ano como juiz, ingressou na terapia, quando começou a se medicar para controlar a ansiedade que sentia. >
Essa ansiedade, posteriormente, foi compreendida como um dos sinais do hiperfoco e da inadequação social que sentia. Somente 26 anos depois, Gerivaldo soube que era autista e, desde então, comemora as noites em que não precisa de remédio para dormir. Também passou a mudar a dinâmica social. >
“Quando eu estou em uma festa e começa um tipo de música que me causa um ‘curto-circuito’ no cérebro, agora eu quero que as pessoas entendam que eu entrei em uma zona de sofrimento e não posso mais ficar. Quando minha esposa me convida para ir ao shopping center e eu não quero ir, hoje ela entende que são muitos estímulos visuais para mim e não precisa ficar zangada comigo, nem eu preciso me sentir culpado”, pontua. >
A iniciativa de abordar o autismo publicamente pela primeira vez surgiu como demanda do processo terapêutico. Gerivaldo e a terapeuta concordaram que trazer isso à tona seria uma forma de contribuição social. “Isso é por mim, pelas crianças autistas e pelas mães dessas crianças, sobretudo por aquelas que ainda não aceitam o diagnóstico de seus filhos, deixando-os sem assistência, e por adultos que não aceitam uma terapia para lidar com o autismo”, frisa. >
O juiz, hoje com 63 anos, entende que um diagnóstico precoce poderia ter dado a ele uma vida mais tranquila. “Eu não teria tantos traumas como tenho hoje, não teria que utilizar de tantas terapias e medicamentos como faço para viver em paz. Teria sido melhor”, diz. >
No dia 18 de junho, em que é celebrado o Dia Mundial do Orgulho Autista, Gerivaldo ressalta o desejo de que outras pessoas autistas e mães de autistas possam buscar o diagnóstico e, assim como ele, se livrar dos rótulos e da não-aceitação. “Quero dizer às mães autistas que, se elas aceitarem o diagnóstico do seu filho, o próximo passo é buscar o acolhimento e a assistência porque ele pode, como eu, ser um juiz de direito um dia”, finaliza. >