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‘Prefeito sem mandato’: padre italiano fez história em Seabra por 19 anos e foi embora sem dar explicação

Frei Justo Venturi era capuchinho e morreu em 2019

  • Foto do(a) author(a) Carolina Cerqueira
  • Carolina Cerqueira

Publicado em 25 de maio de 2025 às 11:00

Frei Justo Venturi durante casamento em Seabra
Frei Justo Venturi durante casamento em Seabra Crédito: Arquivo

Maria Auxiliadora Sá Teles tem 61 anos e não esquece do casamento de sua irmã, em 1987, na cidade de Seabra. Mas não pela celebração e, sim, pelo burburinho que se espalhou na igreja naquele dia. O frei italiano Justo Venturi teria contado a um tal de Seu Josemar que ia embora do município, depois de passar 19 anos lá. Não demorou para a informação se espalhar e a festa perder a graça.

No dia seguinte, Maria Auxiliadora foi em busca do padre para saber o que estava acontecendo e já encontrou a residência dos religiosos fechada. “Foi uma dor tão grande! Ficou um vazio tão grande na cidade!”, lamenta ela, até hoje, que diz que nem quando soube da morte de Frei Justo, em 2019, sofreu tanto.

Apesar dos muitos boatos e dos diversos contatos feitos depois da saída repentina e misteriosa, nenhum morador conseguiu arrancar de Frei Justo a explicação. “A ponte quebrou”, era o que ele, metaforicamente, se limitava a dizer. A indignação e a dor se devem às quase duas décadas de uma atuação que faz os seabrenses idolatrarem o religioso. Há até quem o compare a Dom Pedro II.

Era Deus no céu e Frei Justo na terra. Maria Rubia Souza, de 64 anos, reclama que os padres mais recentes que passaram pela cidade queriam fazer mudanças demais no cartão postal da cidade erguido com pedras — a Igreja do Bom Jesus, que completa 50 anos em agosto de 2025 —, que Frei Justo, que também era engenheiro, colocou de pé. “O último padre daqui foi embora porque as pessoas pediram para ele sair”, conta a moradora.

Ela diz que há um movimento na cidade para não deixar morrer a história do frei que chegou aos 42 anos e tanto fez pela região, incluindo outras igrejas, praças, hospital e escola, que ganhou o apelido de “prefeito sem mandato”. O rebuliço começou com o lançamento em janeiro de 2025 do documentário no YouTube “Pedras que contam memórias”, sobre a passagem do frei por aquelas bandas, e a percepção de que as gerações mais novas nem sabiam quem é a figura.

Foto do Frei Justo Venturi
Foto do Frei Justo Venturi Crédito: Arquivo

“Eu conversei outro dia com uma pessoa de 26 anos e ela não sabia nada, só tinha ouvido falar no nome dele. Nos meus filhos, a memória de Frei Justo é muito viva, eu faço questão”, diz Maria Rubia. Essa questão que ela faz não veio só depois da morte e nem circula só entre os moradores. Depois da saída, os fãs do italiano continuaram mantendo contato com ele, seja por carta, e-mail, Facebook e até chamadas de vídeo no Skype, acompanhando as evoluções tecnológicas.

“Uma banda de Seabra não te esquece” virou nome de um blog e um grupo no Facebook foi criado para compartilhar fotos e notícias do frei. Foi de lá que Pablo Portela e Igor Ramos tiraram algumas das imagens para o documentário que fizeram e foi lá onde chegou a notícia da morte do frei, que já estava de volta à Itália depois de ainda passar por outros municípios baianos.

Virou documentário

Foi por terem crescido ouvindo as histórias do tempo de Frei Justo em Seabra, que foi embora da cidade quando eles ainda eram bem pequenos, que Igor Ramos e o amigo Pablo Portela resolveram transformar tudo isso em um documentário. Um é bombeiro militar, o outro é bacharel em humanidade, mas os dois são apaixonados pelo universo do audiovisual.

As pesquisas duraram de abril até outubro de 2024, a partir dos relatos orais dos moradores, documentos, fotografias e os livros da Província Nossa Senhora da Piedade, que fica em Salvador e abriga a Província dos Frades Menores Capuchinhos da Bahia e de Sergipe.

Pablo conta que a dupla quer inscrever o resultado do audiovisual em festivais e exibi-lo nas escolas de Seabra. Diz que a população recebeu muito bem o documentário e que a parte mais difícil foi abordar a misteriosa saída de Frei Justo da cidade.

“Uns disseram que ele guardou uma mágoa da população, outros disseram que não. Houve quem disse que ele queria construir uma barragem no Rio Campestre na década de 1970 por conta dos problemas de abastecimento de água na cidade. Ele teria conseguido o terreno para o projeto, mas umas pessoas não teriam gostado e começado a sabotar”, relata Pablo.

Igor diz que o documentário foi fundamental para contribuir com a preservação da memória de “alguém que teve um papel crucial tanto na transformação social quanto na urbanização de Seabra”. O bombeiro militar, inclusive, nasceu no hospital que o frei construiu e que hoje leva o nome de Maternidade Frei Justo Venturi.

A avó de Igor, dona Enezia, exibe até hoje em casa um porta-retrato com a foto em que ela aparece ao lado do italiano. Ela era professora de catequese e cantava aos domingos na Igreja do Bom Jesus. Por isso, o neto diz que o documentário, além de uma homenagem à memória coletiva de Seabra, é também uma lembrança afetiva da própria história familiar.

Igreja do Bom Jesus, em Seabra
Igreja do Bom Jesus, em Seabra Crédito: Arquivo

Quem é a peça?

O músico seabrense Hugo Luna, de 77 anos, também divide a própria história com a do frei italiano. Era ajudante de Frei Justo e tocava nas missas. Nos intervalos, conta que conversava sobre política com o capuchinho. “Era um homem de esquerda, a gente notou logo”, diz. “Muito intelectualizado. Ele tinha uma pregação que todo mundo entendia que ele era contra o nazismo, o fascismo, a tortura, a ditadura”, acrescenta.

Chamava a todos para exercerem papeis nas missas, visitava as casas dos moradores, participava dos festejos familiares e promovia atividades para os jovens. Maria Auxiliadora lembra que ele, usando a batina, ensinava os jovens a jogar vôlei, basquete e tênis. Aos finais de semana, ele, as freiras e as catequistas colocavam as crianças num caminhão para tomar banho de rio.

“Teve uma vez até que uma criança começou a se afogar e ele se jogou na água de batina e tudo para resgatar”, lembra ela, que participou dos passeios como catequista. “Nesses encontros e atividades, ele ia passando normas de convivência, ia ensinando sobre o certo e errado, falava sobre família”, completa Maria Auxiliadora.

As ações, o carisma e o bom humor do frei conquistaram a população. Hugo Luna lembra que um tal de padre João Pedro Alves ficou até enciumado na época. “Era muito culto e muito humilde! Mas o bom humor era demais. Como a gente ria! Era todo sério, então as tiradas dele surpreendiam a gente”, lembra Maria Auxiliadora. “A gente, menino na época, contava umas piadas fortes, para não dizer imorais, e ele se acabava de dar risada, não repreendia”, emenda Hugo.

Frei Justo Venturi em Seabra
Frei Justo Venturi em Seabra Crédito: Arquivo

Maria Auxiliadora lembra, aos risos, de do último e-mail que trocou com o frei, em janeiro de 2016, antes da conversa migrar para o Facebook. Ela compartilhou o desejo de escrever um livro sobre o religioso e recebeu como resposta “Esqueça essa ideia de escrever uma biografia que me colocaria em ridículo. Portanto tira da cabeça esta ideia maluca.”

No e-mail, ele se refere à moradora como “Dorinha querida”, deseja feliz ano novo a todos e ainda compartilha as histórias das construções das igrejas que ergueu. Maria Rubia diz que a cidade era muito pequena e muito precária, sem assistência, e lembra também da construção de uma escola técnica.

O local oferecia aulas para adultos de alfabetização, bordado e datilografia, ministradas por freiras que chegaram à cidade a pedido de Frei Justo. As contribuições para a paisagem da cidade são o que fazem os olhos do arquiteto e urbanista seabrense Ruan Macedo, de 27 anos, brilharem.

“A gente não tem nenhum monumento em homenagem a ele, pesquisar sobre a vida dele foi uma iniciativa minha. Toda vez que eu passo na frente da Igreja do Bom Jesus eu fico maravilhado e fui procurar saber quem tinha construído”, relata Ruan.

Ele diz que Frei Justo chegou com um olhar revolucionário voltado para o desenvolvimento urbano e é uma inspiração para o profissional. “Ele soube muito bem usar os elementos locais, como as pedras da região, entendendo a arquitetura inserida no território. Eu saí da cidade para fazer a graduação e voltei porque quero contribuir com a comunidade e valorizar o que temos. Essa região tem um histórico de exploração, de gente que pegava e ia embora. E Frei Justo foi por outro caminho”, compartilha.

Contexto

A professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) Cristina Ferreira é doutora em arquitetura e urbanismo e tem pesquisas sobre a atuação dos capuchinhos na Bahia e as construções da Igreja Católica. Ela explica que muitos religiosos ligados à Igreja desenvolviam vocações voltadas às necessidades da instituição, incluindo a engenharia para a construção de igrejas.

Frei Justo Venturi em seu escritório em Seabra
Frei Justo Venturi em seu escritório em Seabra Crédito: Arquivo

Também acrescenta que o missionarismo é uma das marcas mais fortes dos capuchinhos. “Os capuchinhos italianos começaram com a vinda ao Brasil no século 17 para catequizar os indígenas cariris no norte da Bahia e depois fizeram outras tantas missões pelo estado”, diz a pesquisadora.

Nestas missões, era comum, segundo Cristina, que os capuchinhos investissem no preenchimento de lacunas que os prefeitos deixassem nas cidades, com olhar atento às necessidades da população. “Eles construíam muitas coisas que trouxessem benefícios, como edificações, escolas, hospitais, açudes”, destaca.

A professora ainda explica que os capuchinhos são dissidentes dos franciscanos. “Uma parte dos franciscanos queria flexibilizar as regras de simplicidade e pobreza e assim surgiram os capuchinhos, que queriam manter. Por isso, são conhecidos pela forte humildade e pelas missões para disseminação da doutrina original”, completa Cristina.

Entre o final do século 19 e início do 20, uma nova onda de missões emergiu diante do contexto de separação entre Igreja e Estado. O objetivo era “romanizar a Igreja Católica” e os frades menores capuchinhos tiveram importante papel no processo.

“A ideia era combater o protestantismo de forma inteligente. Então, tinha uma onda a favor da modernização das construções, trazendo novas técnicas, fazendo releituras e retomadas de estilos antigos diversos. Por outro lado, tinha um conservadorismo da moral e dos costumes muito forte e é neste contexto que surgem os diversos colégios católicos”, finaliza a pesquisadora.