A cultura hacker e a chave do futuro

Se a gente perder a chave da porta de um futuro mais sustentável e democrático, ainda vamos poder contar com a inspiração hacker para abrir novas possibilidades de seguir em frente

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  • Andre Stangl

Publicado em 14 de janeiro de 2024 às 11:00

Prompt design com DALL-E Crédito: Andre Stangl, 2023

“Aqui ninguém precisa trancar a porta”. Antigamente, era comum ouvir isso na boca dos moradores das cidades pequenas. À medida que as cidades vão crescendo, essa tranquilidade vai sumindo. Nas cidades grandes, as portas estão sempre trancadas, mas se alguém perder as chaves basta chamar um chaveiro para resolver o problema. No mundo digital os hackers eram como chaveiros, mas hoje em dia só associamos sua imagem aos arrombadores.

O sociólogo espanhol Manuel Castells, no seu clássico livro “A Galáxia da Internet” (2001), traça um panorama muito interessante sobre a origem da Internet. Entendendo a Internet como uma nova cultura, ele identifica vários grupos que ajudaram a moldar a internet como conhecemos hoje. E, para ele, um grupo fundamental é o dos hackers. Um prato cheio para as narrativas ficcionais e para as manchetes de jornais. Eles podem habitar nossos pesadelos digitais e também nossos sonhos de uma sociedade justa. O conceito de hacker se tornou cada vez mais complexo. No começo, existia uma distinção entre hacker e cracker, ou seja, entre mocinhos e bandidos, mesmo gradações como black hat hacker, grey hat hacker e white hat hacker. Com o tempo, pelo menos para os leigos, essa distinção caiu em desuso e podemos dizer que, da mesma forma que existem policiais honestos e outros não, sem a necessidade de criar um termo específico, existem hackers legais e outros nem tanto.

Para tentar entender a importância desse grupo, vamos ver alguns exemplos. Em 1981, Ian Murphy, um dos primeiros hackers da história, mais conhecido como o Captain Zap, junto com [três amigos hackearam os servidores da AT&T, alterando os relógios internos da empresa para modificar as taxas de cobrança. Devido a essa manipulação, as ligações feitas durante a tarde recebiam descontos aplicados normalmente apenas para chamadas noturnas, enquanto as chamadas feitas à noite eram tarifadas com taxas mais altas]. Uma brincadeira que teve consequência no bolso de milhares de consumidores. Seria ele uma espécie de Robin Hood moderno? Ou simplesmente um vândalo?

Como veremos a seguir, a defesa da liberdade de informação e da colaboração são aspectos fundamentais na história dos hackers que criaram os softwares livres e de código aberto. Uma parte dos hackers defende uma forma radical de ativismo digital. É o caso do WikiLeaks, um coletivo que publica informações de fontes anônimas e dados sigilosos, revelando bastidores de guerras, espionagem e outros crimes cometidos por governos e autoridades. Segundo a Wikipédia, desde 2006 eles já publicaram mais de 10 milhões de documentos. Um de seus fundadores, Julian Assange, enfrenta problemas com a justiça desde 2010 e atualmente está preso na Inglaterra.

Em 1996, John Perry Barlow escreveu a famosa Declaração de Independência do Ciberespaço: “Governos do Mundo Industrial, vocês, gigantes cansados de carne e aço, eu venho do Ciberespaço, o novo lar da Mente. Em nome do futuro, peço ao passado que nos deixe em paz. Você não é bem vindo entre nós. Você não tem soberania onde nos reunimos.” O clima na época era de que a internet poderia ajudar a modificar radicalmente as formas de organizar e distribuir riqueza, informação e poder.

Para esses hackers, é muito importante a defesa incondicional da liberdade de acesso a todo tipo de informação e seus inimigos são as empresas ou governos que limitam o acesso a essas informações. Segundo Castells, a cultura hacker pode ser compreendida como um tipo de cultura do dom (doação), semelhante ao conceito de dádiva de sociedades tradicionais – em que é mais importante a cooperação ao invés da competição, ou seja, no lugar da individualidade, a generosidade.

Um dos aspectos mais interessantes dessa cultura foi ajudar a desenvolver novas formas de colaboração usando as tecnologias digitais. A associação em redes permite a colaboração à distância, em tempo real ou de forma assíncrona. A Wikipédia, por exemplo, é uma enciclopédia colaborativa, em permanente atualização, disponível em quase todas as línguas existentes, que pode ser consultada gratuitamente. Um projeto desse tipo só foi possível por conta da Internet. Mas há outro aspecto fundamental para fazê-lo existir: um objetivo comum. Sem isso, não conseguimos colaborar.

Todos os voluntários que colaboram com a Wikipédia concordam com suas regras e dedicam horas de suas vidas para escrever e zelar pela qualidade do conteúdo da enciclopédia. A diretora de comunicação da Wikipédia, Anusha Alikhan, disse em uma entrevista que são “55 milhões de artigos publicados em 300 línguas, a Wikipédia conta com 1,5 bilhão de acessos únicos mensalmente. A plataforma é editada 350 vezes por minuto e é lida mais de 8 mil vezes em um único segundo”. Segundo ela, um erro na plataforma leva em média 5 minutos para ser identificado e revisado. Atualmente, o foco é ampliar a diversidade de colaboradores e de grupos sub-representados.

Na Cultura Digital, além da Wikipédia, outro exemplo do poder da cooperação é o desenvolvimento colaborativo de softwares livres e de código aberto, como os sistemas operacionais baseados em Linux. O Movimento do Software Livre surgiu na década de 1980 com o objetivo de manter a linguagem dos sistemas operacionais acessíveis para programadores e estudantes.

Para nós, leigos, é difícil entender o alcance desse tipo de colaboração. Fica mais fácil se olharmos o exemplo do Fandom. Páginas na Internet semelhantes a Wikipédia, criadas por fãs sobre seus personagens favoritos. Existem fandoms sobre Harry Potter, sobre Star Wars ou Naruto. A quantidade de informações reunidas nesses fandoms jamais poderia ser reunida por um único fã ou mesmo por uma empresa.

Um aspecto interessante da cultura hacker era tentar dar um sentido comunitário e construtivo para o desenvolvimento tecnológico, inspirado no desenvolvimento colaborativo dos softwares livres. É evidente que nem todos os usuários ou desenvolvedores compartilham dessa visão, é por isso que até hoje existe muito debate sobre a melhor forma de regulamentar as consequências sociais dos avanços tecnológicos. Lembrar dos bons exemplos da cultura hacker é importante para recuperar algum tipo de inspiração ética em nossa relação com as tecnologias. Isso também pode inspirar uma forma mais colaborativa de pensar a educação e a produção do conhecimento. A pandemia trouxe um bom exemplo do poder da colaboração.

[O desenvolvimento de vacinas para a COVID-19 e o modelo de desenvolvimento colaborativo de softwares livres e de código aberto compartilham algumas semelhanças, como a colaboração internacional e o compartilhamento aberto de conhecimentos e dados. Contudo, existem diferenças significativas entre os dois processos. Diferentemente do software livre, o desenvolvimento de vacinas envolve direitos de propriedade intelectual e está sujeito a rigorosos regulamentos de segurança e eficácia. Além disso, enquanto muitos projetos de software livre são mantidos por comunidades de voluntários ou financiados por doações, o desenvolvimento de vacinas frequentemente requer grandes investimentos de empresas e governos, com expectativas de retorno financeiro. Portanto, apesar de ambos compartilharem um espírito de colaboração, as diferenças nas estruturas regulatórias, modelos de negócios e propriedade intelectual marcam distinções claras entre esses dois campos.] (via chatGPT4).

Mesmo com as diferenças, apontadas no exemplo do desenvolvimento das vacinas, podemos dizer que podem existir caminhos intermediários, que busquem equilibrar sustentabilidade financeira e colaboração. Sendo assim, buscar alguma forma de inspiração na história da cultura hacker pode ser um bom caminho para encontrar um sentido mais comunitário no desenvolvimento das tecnologias.

[Inspirar-se na cultura hacker pode levar a modelos de desenvolvimento que combinam inovação aberta com estratégias sustentáveis de negócios. (...) Além disso, a abordagem da cultura hacker em relação à transparência e à democratização do conhecimento pode ser aplicada para garantir que os avanços tecnológicos sejam acessíveis e benéficos para uma gama mais ampla da sociedade. Isso pode incluir políticas de licenciamento flexíveis, colaborações entre setores público e privado, e iniciativas de educação e capacitação que permitam uma participação mais ampla no processo de desenvolvimento tecnológico. (..) especialmente em campos onde os desafios éticos, sociais e econômicos são particularmente complexos.] (via chatGPT4).

Se a gente perder a chave da porta de um futuro mais sustentável e democratico, ainda vamos poder contar com a inspiração hacker para abrir novas possibilidades de seguir em frente sem precisar quebrar a fechadura.

Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP