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Andre Stangl
Publicado em 22 de junho de 2025 às 05:00
Vivemos cercados por imagens. Nunca se produziu tanto, nunca se consumiu tanto. A todo instante, deslizamos os olhos sobre telas que nos oferecem uma profusão infinita delas: selfies, memes, notícias, catástrofes, simulações, emojis. E talvez por isso mesmo, nunca foi tão difícil confiar no que vemos. A fotografia já não prova nada. E agora, nem mesmo os vídeos escapam das simulações quase perfeitas. A realidade parece estar sendo clonada, e distinguir o que é realmente real — especialmente no mundo das redes — tornou-se uma tarefa complicada. Mas até que ponto isso afeta também nossa percepção do que é real fora das telas? E como podemos lidar com esse desafio?>
Ainda me lembro de quando liguei a TV em 11 de setembro de 2001. As imagens que surgiam na tela eram tão inacreditáveis que pareciam saídas de um filme: sem cortes, sem trilha sonora, apenas a brutalidade dos aviões colidindo contra os edifícios. Eu não conseguia acreditar naquelas imagens. Foi apenas ao ler as legendas, ouvir os jornalistas e ver outras cenas, de diferentes ângulos, que percebi: aquilo era real. A imagem em si, isolada, era inacreditável. O que a transformou em verdade foi a mediação jornalística, a validação de fontes confiáveis — ainda não havia Twitter, a conversa com amigos por telefone também ajudou, mas foi a instituição da imprensa a principal fiadora daquela informação.>
Uma lição que ficou desse episódio: a confiança não reside mais na imagem em si, mas na mediação — na narrativa que a contextualiza. Hoje, qualquer pessoa com um celular pode produzir, editar e compartilhar imagens, inclusive com o auxílio de inteligências artificiais. A acessibilidade tecnológica transformou a representação visual em um território disputado, onde o falso e o verdadeiro frequentemente se embaralham. Nesse cenário, o papel da imprensa séria, da academia, das agências de checagem e da educação digital tornam-se ainda mais crucial. Elas funcionam como filtros interpretativos diante do mar de fabricações, ruídos e desinformação.>
Com a democratização das ferramentas de registro e difusão, as imagens passaram a ser usadas como provas de crimes e abusos. Mas até isso está em processo de transformação. Seu valor documental, antes quase incontestável, começa a ser colocado em dúvida. Fotografias, que outrora serviam como evidências tangíveis de um acontecimento, tornaram-se passíveis de questionamento. Por isso, na esfera jurídica, não basta mais mostrar uma imagem — é preciso demonstrar como ela foi obtida. É nesse ponto que entra o conceito de cadeia de custódia: o conjunto de procedimentos formais e documentados que garantem a autenticidade, integridade e rastreabilidade de uma evidência, do momento em que ela é coletada até sua apresentação em tribunal.>
Ou seja: não basta mais ver. É preciso saber como foi o registro, por quem, com quais ferramentas e em que contexto. A confiabilidade se desloca da imagem para o processo que a sustenta. A fotografia, por si só, já não basta; sua credibilidade depende da documentação que a acompanha. O que antes era um gesto espontâneo de registro, agora exige perícia técnica e protocolos rigorosos. Se o objetivo é documentar, torna-se essencial atentar para esses aspectos de validação.>
Na prática, porém, a maioria das imagens é produzida como forma de autopromoção nas redes: uma estratégia de engajamento entre pares, frequentemente usada para reforçar uma visão de mundo contra outra. A imagem vira instrumento de pertencimento, não de verificação. Uma reportagem de Steven Lee Myers, publicada no The New York Times em 10 de junho de 2025 (“Fake Images and Conspiracy Theories Swirl Around L.A. Protests”), relata como uma onda de desinformação visual tem inflamado a percepção pública dos protestos em Los Angeles contra as medidas antimigratórias do governo americano. Imagens e vídeos falsos espalhados pelas redes criaram a falsa impressão de que a cidade estaria mergulhada numa guerra civil, quando os confrontos, na verdade, se restringiram a áreas específicas. Até cenas de filmes antigos têm sido recicladas como se fossem registros reais.>
No recém-lançado Mountainhead (disponível na Max HBO), dirigido por Jesse Armstrong, um grupo de bilionários da tecnologia se refugia em um retiro nas montanhas enquanto o mundo desaba sob o peso das inovações que eles próprios ajudaram a criar. Entre eles está Venis, magnata das redes sociais, cuja plataforma se torna o epicentro da disseminação de deepfakes: vídeos falsos de violência, atentados e estupros, supostamente capazes de corroer completamente a noção do que é real — especialmente em contextos onde a tensão política já ultrapassou os limites do tolerável. O filme de Armstrong não apenas satiriza a indústria da tecnologia, mas nos obriga a encarar o vazio existencial desses semideuses de laboratório. Um mundo onde as imagens têm o poder de destruir qualquer base comum de sentido. Mas a suprema ironia, no filme, é imaginar que esses personagens — tão imaturos, tão incapazes de se organizar para matar uma barata sem alguma pataquada — sejam, de fato, os autores de um complô para dominar o mundo. Como às vezes também parecemos acreditar, deste lado de cá da tela.>
O curioso é que o Google acaba de apresentar o modelo Veo 3, uma nova funcionalidade da plataforma Gemini, disponível nos planos pagos da empresa. Trata-se de uma inteligência artificial generativa de vídeo, capaz de produzir cenas realistas a partir de comandos escritos. O que antes exigia equipes de filmagem, diretores e efeitos especiais agora pode ser criado por qualquer pessoa com uma ideia na cabeça — como fez Raony Phillips no divertido (e um tanto machista) programa Marisa Maiô. A fronteira entre a imagem “feita” e a imagem “pensada” se dilui. E o potencial dessa tecnologia — seja ele criativo ou destrutivo — nos obriga a revisitar os fundamentos do conceito de imagem, um tema que atravessa a história da filosofia.>
Pelo menos desde Platão, na tradição ocidental, tentamos refletir sobre nossa relação com as imagens. Um dos grandes momentos dessa reflexão está no famoso Mito da Caverna — que até hoje provoca debates intensos (se você ainda não conhece, vale dar um Google). Dando um salto no tempo, quero destacar o quadro A Traição das Imagens (1929), de René Magritte, que retrata um cachimbo acompanhado da frase em francês: Ceci n’est pas une pipe (“Isto não é um cachimbo”), desafiando diretamente a relação entre imagem e realidade. Magritte nos lembra que uma representação não é o objeto real — ninguém pode fumar aquele cachimbo pintado. Surgida no contexto do surrealismo, a obra critica a confiança nas aparências e nos signos visuais, antecipando debates filosóficos sobre linguagem, simbolismo e representação. Tornou-se um marco da arte moderna, influenciando pensadores como Michel Foucault, que escreveu um ensaio sobre o quadro em 1973. A ilustração desta coluna é, inclusive, uma recriação desse clássico.>
Muitas vezes, nos debates sobre deepfakes ou imagens criadas por inteligência artificial, vemos surgir a pergunta: “Mas essa imagem é real?” A própria formulação já carrega uma armadilha. Como Magritte nos lembrou: nenhuma imagem é real — ou melhor, todas são, de algum modo, falsificações ou simulações. Toda imagem é uma representação, um deslocamento em relação à coisa que pretende mostrar. A questão, portanto, não é se a imagem é real, mas como ela produz sentido, com que intenção, e sob quais mediações.>
O controverso Jean Baudrillard (que também era fotógrafo) já dizia isso: não há mais original nem cópia, apenas simulações autônomas. No ensaio Photography, or the Writing of Light (CTheory, 2000), Baudrillard afirma que a imagem não representa: ela substitui. Ela deixa de apontar para algo fora de si e passa a ser o próprio referente, o próprio mundo. Baudrillard argumentava que a “escrita da luz” fotográfica desmonta a ideia de objetividade: ao alienar o tempo, silenciar o movimento e fracionar a realidade, a câmera expõe um mundo essencialmente não objetivo. A técnica, longe de reproduzir fielmente o real, cria um jogo de ilusão em que dispositivo e objeto conspiram para mostrar que nada está decidido; a fotografia resiste ao excesso de sentido por meio de seu silêncio, imobilidade e segredo. Cada clique é um duelo que mata simbolicamente objeto e sujeito, mas também possibilita uma transfusão poética entre ambos; a imagem torna-se ficção instantânea em que o mundo “age” e nos impele a agir. Contra a estética moralizante do realismo, Baudrillard defende libertar a fotografia das pressões de significar dor ou compaixão, permitindo que o real recupere sua própria estranheza. Mas se não acreditamos mais no que vemos, ouvimos ou sentimos, como reconstruir uma base comum? A descrença radical nos empurra para o niilismo, para a crença de que tudo é manipulado, tudo é relativo, tudo é jogo de aparências. Ou talvez essa crise também aponte para uma possibilidade: a de construir uma nova metafísica. Uma outra forma de encarar a realidade como algo partilhado, processual, negociado entre consciências que reconhecem seus filtros e limitações. A pergunta não é mais: isso é verdade? Mas sim: quem disse? para quê? com que intenção?>
A palavra “imagem” vem do latim imago, e significava tanto representação visual quanto fantasma, aparência ou ideia. Ligada ao verbo imitari (imitar), revela desde sua origem a tensão entre representar e simular. A imagem nunca foi o real. Sempre foi rastro, sugestão, sombra. Saber disso não nos liberta da imagem, mas nos torna leitores mais atentos. Não basta mais ver: é preciso interpretar. E talvez, ao fazer isso juntos, possamos reconstruir um solo comum — simbólico, sim, mas nem por isso menos real — capaz de nos devolver algum sentido compartilhado do real.>
(Esse texto foi coescrito com uma IA)>
Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP>