Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
André Uzeda
Publicado em 26 de outubro de 2025 às 08:00
Há uma encruzilhada mágica que une o bairro de Havana Vieja ao Largo do Pelourinho. Aqui, Elegguá atende pelo nome de Exu. E Exu pelo nome de Elegguá. A distância geográfica que separa a capital cubana de Salvador é mero devaneio, quase ficção, diante dos desígnios da espiritualidade. >
Santería é o nome da mais difundida religião afrocubana. E, assim como nosso candomblé e também na umbanda, há o culto sagrado aos deuses que dançam. Tanto na Bahia quanto em Cuba, esta religiosidade foi trazida por negros e negras acorrentados que vieram de África para cortar cana-de-açúcar nos engenhos do Novo Mundo.>
No período colonial, o culto aos orixás sofreu o mesmo processo de perseguição das religiões afro-brasileiras, recorrendo ao sincretismo como forma de proteção, combinando elementos católicos com as divindades iorubás para preservar a fé e os adeptos.>
Passeando com um olhar atento pelas ruas de Havana, é possível notar casas com espadas de São Jorge na frente, lojas dedicadas à santería e uma infinidade de pessoas usando roupas brancas e torsos na cabeça.>
“Quase todo mundo aqui é protegido pelo seu orixá. Temos uma ligação ancestral com as nossas divindades, que nos aconselham e nos guiam”, conta Yoan Alexei, 44 anos, mais conhecido pelo apelido de ‘El Chino’, por ser neto de avô imigrante da Coreia do Sul.>
El Chino nos levou até sua casa, próximo à Praça Cervantes, em Havana Vieja. Lá, mostrou seu altar com imagens de Yemayá (Iemanjá), Oyá (Iansã), São Lazáro (Obaluaê), Oshún (Oxum), Ochosi (Oxóssi), Shangó (Xangô) e Obbatalá (Oxalá) – este último, o orixá dono de todas as cabeças cubanas.>
Na santería é muito comum o uso de bonecas e brinquedos para representar as divindades, todos bem ornamentados com roupas nas cores específicas. Diferentemente do Brasil, e particularmente da Bahia, onde há terreiros organizados para a reverência aos orixás, em Cuba, a religião ocupa uma centralidade no âmbito doméstico. >
O culto é feito em casa. No máximo, com a presença de familiares e amigos.“Todo mundo tem seu próprio altar. Eu até gostaria que o meu fosse mais bonito, mas fiz com as condições que tenho. Sempre que ganho um dinheiro extra, incremento algo a mais para proteger quem me protege”, diz Yoan Alexei. >
Filhos de Elegguá e corrente no pulso>
Outro ponto divergente muito marcante entre a santería e o candomblé são os filhos de Elegguá e Exu. No Brasil, não é muito usual um adepto ser atrelado a tal divindade. Quando os búzios indicam esta filiação, dada a raridade do vínculo, há uma comemoração nos terreiros. Em Cuba, é bem diferente. >
‘El Chino’, por exemplo, é filho de Elegguá. Ele usa uma pulseira vermelha e preta no pulso esquerdo. Além das guias no pescoço, como há por aqui, o bracelete também é uma forma de conexão com o orixá. >
“Eu mesmo faço meus braceletes e minhas guias. Mas também há lojas que vendem. Sobre ser filho de Elegguá, é uma honra enorme, porque Elegguá guarda todos os caminhos e de todos destinos”, diz.>
Santería na Revolução Cubana>
Quando os guerrilheiros barbudos de Sierra Maestra tomaram o poder em Cuba, derrubando o ditador Fulgêncio Batista, dois anos depois instituíram um regime socialista na ilha caribenha.>
O estado foi declarado ateu e as práticas religiosas, sobretudo as católicas, foram terminantemente proibidas. A santería não chegou a ser considerada ilegal, por entrar na brecha mais de folclore do que de religião. Ainda assim, sofreu perseguição de burocratas do governo inconformados pelo que consideravam um caráter “pouco científico” dos cultos aos orixás.>
Somente nos anos 1990, com o colapso da União Soviética, Fidel Castro reconsiderou o regime cubano, declarando o estado laico e autorizando todas práticas religiosas, indiscriminadamente. Os três últimos Papas, excluindo o recém-empossado Leão XIV, visitaram a ilha: João Paulo II (em 1998), Bento XVI (2012) e Francisco (2015).>
Hoje, em Havana, há enormes lojas dedicadas à santería, como por exemplo a Casa Obbatalá, onde é possível comprar roupas, estátuas e bonecos dos orixás. Um bracelete é vendido a 1.800 CUPs (pesos cubanos), ou 4 dólares, a unidade.>
Há também a Associação Cultural Yorubá de Cuba, uma espécie de museu que preserva a história da santería, sem jamais abrir as portas dos segredos e mistérios que guiam a religião.>
A maior instituição de salvaguarda da memória popular, no entanto, ainda é o próprio povo cubano. Em um momento de crise absoluta, recrudescida pelas novas regras do embargo econômico imposto pelo presidente dos EUA, Donald Trump, a fé se torna um elemento de resistência e esperança.>
Em cada encruzilhada de Havana, ou do Pelourinho, Elegguá atende pelo nome de Exu. E Exu pelo nome de Elegguá.>
Esta coluna é dedicada a Ive Deonísio, amiga há mais de 20 anos, e farol nos rumos da espiritualidade.>
Havana