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Da Redação
Publicado em 12 de agosto de 2018 às 05:00
- Atualizado há um ano
Em tardes vazias tão claras sem fim, o senhor Q – não ouso revelar-lhe o nome, ficaria possesso – relembra das infinitas tardes tão vazias tão claras sem fim que viveu – e quer chorar – mas não tem lágrimas. Esse cara viveu trocentas tardes assim, afundadas em pântanos de tédio, neste tempo sem sentido ao qual está sendo obrigado a viver, sem chance de redenção a vista.
Onde precisou estar o senhor Q esteve. Luanda, Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Recife, Brasília, Salvador ou qualquer fim de mundo que lhe fizesse proposta de trabalho. Oásis efêmero, Brasília foi a porta da esperança para o senhor Q – eram os anos 2000.
O senhor Q se apegou a Brasília pelas inexoráveis tardes vazias tão claras sem fim que os meses de julho e agosto proporcionam – quando as tardes vazias tão claras sem fim atravessam madrugadas – lentas, preguiçosas, ressecadas e acachapantes.
Coincidiu de o senhor Q conseguir abrigo temporário – quarto-e-salinha em modesto prédio do Setor Octogonal. Nesse lugar – apenas ele e o nada, o morador viajara de férias, e o abrigara – macerou agruras amorosas, profissionais, existenciais que o consumiam e ainda o consomem.
Ainda assim, o senhor Q viveu tardes vazias-tão-claras-sem-fim plenas nesse endereço. Todas as manhãs dava duas voltas de dez quilômetros do Parque da Cidade – e nessas caminhadas evaporava mirabolantes projetos de redenção que nunca se materializariam.
Endorfinado, atravessava as nove vias que o separavam do lar-doce-lar provisório. Ao chegar, suado e faminto, ducha gelada + dois ovos fritos com gemas moles + miojo + suco de polpa de maracujá o apascentavam. Dentes escovados às pressas, puxava a cortina tosca da salinha para que o sol não o cegasse, e deitava no sofá-cama surrado – e cochilava – e não raro esse cochilo se transformava em sono profundo.
No meio de tarde qualquer, o senhor Q acordou ao som de ‘Clair de Lune’, de Debussy, tocada ao piano. Ainda afetado pelo sono, distinguiu aos poucos sons de melodia que amava. [O senhor Q fora crítico de música erudita em importante jornal paulistano nos anos 1980-1990].
As tardes deixaram por um tempo de ser tão vazias-tão-claras-sem-fim e o senhor Q passou as tardes quentes e secas de Brasília se deliciando ao som de Lizt, Gershwin, Schumann e Mozart. [Mãe zelosa alugara o quarto-e-salinha ao lado para o filho de 17 anos se exercitar].
O senhor Q eletrizou-se. Pensou em ficar de tocaia para conhecê-lo. Decidiu fazer visita ao pianista prodígio, e, quiçá, lhe dar bons conselhos.
Meras quimeras. Em tarde de final de agosto, o senhor Q não ouviu mais som algum. Desesperou-se. Desceu as escadas aflito e ouviu do zelador: - A mãe disse que o filho foi estudar piano no estrangeiro.
O mundo do Senhor Q rodavivou. Como viver apenas com a endorfinas das caminhadas, sem sinfonia diáfana a lhe amenizar as tardes vazias? Voltou aos prantos para o ‘abrigo’ e se empanturrou de comida: 4 ovos fritos com gemas moles + 5 pacotes de miojo + 2 latas de leite condensado – tudo na veia, claro.