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“Onde vocês estavam enquanto eu pedia, pelo amor de Deus, para assistirem à minha peça?”, pergunta ator baiano

Nesta entrevista, Ricardo Castro - o homem que, sozinho, chegou a levar um milhão de pessoas ao teatro – fala sobre a cena teatral da Bahia e explica motivos de abandonar a profissão, depois de 40 anos

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 6 de maio de 2025 às 14:24

Ricardo Castro
Ricardo Castro Crédito: Shirley Stolze

Por @flaviaazevedoalmeida

Ricardo Castro tem 54 anos. Destes, 40 foram dedicados ao teatro. O ator subiu ao palco, pela primeira vez, aos 14, e participou de espetáculos de grande sucesso em Salvador e em São Paulo. Na Bahia, fez parte do elenco original de A Bofetada, peça que mudou a cena teatral baiana no fim dos 1980. Em seguida, participou do projeto Cuida Bem de Mim, estrondoso sucesso na Bahia do fim dos 1990. Em 1999, Ricardo decidiu criar a Companhia de um Homem Só e estreou o espetáculo 1,99. Numa experiência raríssima, ele escreveu, dirigiu, atuou, iluminou, vestiu, maquiou, divulgou e até cuidou da bilheteria. Sozinho. Nesse formato, ficou em cartaz por 26 anos, viajou por todo o Brasil e Buenos Aires, atingindo um milhão de pessoas. O enorme sucesso rendeu convites para novela na Globo e outros trabalhos. Nesta semana, Ricardo Castro - o homem que, sozinho levou um milhão de pessoas ao teatro – se despediu dos palcos. Nesta entrevista, ele conta detalhes e explica os porquês.

Flavia Azevedo – Você é um ator muito conhecido e que está no imaginário de todo mundo que acompanha o teatro, principalmente baiano. Como as pessoas receberam o seu anúncio, publicado nas redes sociais, de que decidiu abandonar a sua carreira depois de 40 anos?

Ricardo Castro – Eu recebi de muita gente o pesar imenso, porque me acham um artista genial, porque me acham muito bom, porque mudou a vida deles, porque eu era o único artista livre que eles conheciam. Como viram que eu estava muito triste, eu recebi mensagens de psicoterapeutas, holísticos, advogados, empresários, pessoas dizendo que querem me ajudar na minha nova vida e ajudar a segurar a onda da minha cabeça. Mas como muita gente comentou esse meu “divórcio”, lamentando muito, eu também fiquei pensando. Poxa, mas onde vocês estavam enquanto eu estava pedindo, pelo amor de Deus, para vocês irem assistir à minha peça? Que era a minha única fonte de renda, que era a minha razão de existir?

A solidariedade chegou tarde?

É aquela coisa, né? O artista, quando ele desiste, quando ele morre, aí, “poxa, que pena”. Mas enquanto ele estava aí... veja você que, na última sexta, quando eu resolvi não mais fazer o espetáculo, chegou uma moça e falou assim: “poxa, mas logo hoje que eu vim ver essa peça, você não vai mais fazer?”. Eu falei: “poxa, meu amor, mas eu faço a peça há 26 anos. Você levou 26 anos para vir. Por que você não veio antes? Se você e outras pessoas tivessem vindo antes, talvez eu não tivesse parado”. Mas, enfim, o importante é que muita gente foi. Mais de um milhão de pessoas e isso foi muito importante. As pessoas receberam tudo de maneira muito triste, porque é muito triste um “divórcio”, né? Tem uma música que diz “o amor é a coisa mais triste quando se desfaz”. A minha relação com o teatro sempre foi de amor. Então, é muito triste.

Você fez muito sucesso no teatro e por muito tempo. De que maneira avalia a condução desse “negócio” e, objetivamente, eu gostaria de saber se, hoje, conduziria de outro modo?

Meu erro foi pegar todo o dinheiro que ganhei com o teatro e investir de novo em teatro, porque, nesses anos todos - são 26 anos da minha companhia de teatro - eu nunca ganhei um edital, nunca usei o dinheiro público. Eu participei de festivais no Brasil, e, sim, tinha um apoio público e privado, mas eu coloquei um projeto no edital e ganhei? Não, nunca. E eu continuei tentando até 2015, quando eu desisti de participar dos editais.

Por que?

Porque acho que eles não atendem ao que seria necessário, porque também eu achava que teatro tinha que viver de bilheteria da sociedade civil, do dinheiro das pessoas. Eu nunca gostei de depender de dinheiro público. Porque eu acho que tem ali (nos editais) uma comissão sempre que escolhe que tem ideologias partidárias, religiosas, raciais, de gênero, enfim. Tudo isso que está acontecendo hoje, que a gente sabe, vem de algum tempo. Eu venho desse tempo em que a gente fazia teatro de quinta a domingo, lotando os teatros, que infelizmente não existem mais. Eu sempre vivi de bilheteria. Eu conheci alguns países da Europa para pesquisar teatro, para viver teatro, para ver teatro, para sofisticar meu teatro, minha linguagem, e tudo isso com dinheiro de bilheteria. Eu venho de uma família pobre e nunca fui agraciado com milhões de editais, nem dinheiro público nenhum, nem de empresa nenhuma. Então, eu tenho muito orgulho disso, muito mesmo.

O ingresso para o seu espetáculo, durante algum tempo, custou apenas R$1,99...

Sim, fiz um teatro que era para todo mundo, passei os quatro primeiros anos do I,99 cobrando um I,99. Então, eu era quase que a alfabetização do público, e dando às pessoas o poder de adquirir teatro, e não teatro de graça, pago pela prefeitura, como se fosse um trio elétrico. Não, não era isso. A pessoa escolhia ver a peça, pagava o quanto podia, porque todo mundo podia pagar esse preço, e foi muito bacana.

Todo mundo podia pagar e todo mundo ia ao teatro, né?

Sim! Tem um momento muito especial nisso tudo, quando eu estreio o espetáculo no Teatro XVIII. Eu estava lá para fazer a peça, e numa mesa estava sentado o Inácio de Loyola Brandão. Ali na mesinha do lado, tinha um entregador de pizza, que foi na minha casa, no Rio Vermelho, entregar uma pizza, e o troco era dois reais. Eu falei “se eu lhe der o troco, você vai ver a minha peça de teatro com esse dinheiro?”. Ele falou: “mas não dá” e eu falei “dá, a minha peça dá para ver com esse dinheiro”. Pois ele foi e assistiu à peça, ali ao lado de Inácio. Achei maravilhoso, porque imagina: tinha o entregador de pizza e um grande intelectual brasileiro, lado a lado, assistindo ao meu espetáculo. Pagando em 1,99, porque Inácio também pagou, né? Todo mundo pagava. E eu acho que o teatro deve ser assim. É preciso pagar, como se paga cerveja, como se paga comida, como se paga aluguel.

Além de epifanias como essa, o que mais o teatro lhe deu?

Todas as coisas boas que eu conquistei, nesses 40 anos, foram através do teatro. As pessoas, os lugares, o aprendizado, e o dinheiro que eu ganhei na minha vida - e que parei de ganhar na minha vida - sempre foi da bilheteria do teatro. Então, eu sou muito grato às pessoas que foram e que me prestigiaram pagando meu ingresso, mesmo quando ele era apenas 1,99. Me dando dignidade e fortalecendo a minha razão de existir, que foi o teatro, nesses 40 anos. Até que cheguei numa situação em que o público não estava mais indo, não só ver essa peça, como todas as outras que fiz. Assim como não está indo ver as peças dos meus amigos.

O público sumir me parece apenas parte do problema, talvez um sintoma até. Por que o negócio teatro ficou impraticável pra você?

Antes de tudo, os custos caríssimos das pautas, tanto dos teatros particulares quanto públicos. É um absurdo teatros públicos cobrarem as pautas que cobram. Também o baixo investimento no setor, vindo do orçamento do Estado. Cortaram agora muito lá no Federal. Aqui no Estado e no município se trabalha com o dinheiro que vem da Federação, enfim, dinheiro pouco. Os editais são irrisórios e eles pedem contrapartidas exorbitantes e pontuam pessoas pela sua raça, pela sua cor, pela sua orientação sexual, pela sua condição de saúde, seja mental ou física. Não pelo projeto, porque não se escolhe o projeto, se escolhe o proponente. Então, eu não posso participar de uma coisa que está valendo a minha pessoa e não a minha arte. Eu falo isso, mas eu não participo de editais há 15 anos, só para deixar isso claro, vou repetir: eu nunca ganhei e deixei de concorrer há 15 anos.

De que maneira as empresas que vendem ingressos entraram nesse setor?

As “tiqueteiras” viraram um pedágio entre o artista e o público! Os teatros todos nos obrigam a usar “tiqueteiras” e elas cobram 10% ou mais em cima do valor do ingresso. As contas todas de cartão de crédito, de “tiquetagem”, ficam para nós, artistas e produtores de teatro.

A gente não vê mais longas temporadas de espetáculos. Isso também é problemático?

Sim. Outro motivo grande é esse: temporadas muito curtas, de apenas um dia por semana. Não tem como você pagar os custos de uma montagem fazendo apresentações semanais em temporadas de um mês, ou seja, você faz quatro apresentações, cinco, um horror. A diminuição e sucateamento dos espaços de teatro, teatros de Salvador e do Estado. Muitos já desapareceram, outros estão ruindo, TCA (Teatro Castro Alves) fechado, o Teatro Dona Canô (em Santo Amaro) ruindo, inúmeros centros de cultura do Estado fechados, parados, ou seja, a gente não tem mais como viajar com teatro pelo Estado da Bahia. Os projetos de circulação também não existem. Isso atrapalha muito.

Mas essas poucas apresentações, por exemplo, poderiam estar lotadas. E as pessoas poderiam cobrar a reabertura e manutenção de teatros se isso estivesse entre as prioridades delas...

Aí vem tudo que também não é só da pasta da cultura, né? A violência impede muita gente de ir ao teatro, com certeza. O baixo nível educacional, porque isso também compromete o sucesso de uma cena teatral, porque a gente está sempre tendo que fazer teatro para se comunicar com pessoas que estão sendo cada vez pior instruídas. Isso é muito grave. Outra coisa é o espaço irrisório na mídia. Nós chegamos a ter agendas culturais, a gente dava entrevista no jornal do meio dia das maiores emissoras da Bahia e do Brasil. Hoje a gente não tem mais esse espaço, você não vê mais artistas de teatro dando entrevistas nos jornais das emissoras. Se a gente não aparece na mídia, a gente diminui o interesse também da sociedade em relação ao teatro. A extinção também de projetos bem-sucedidos, como festivais de teatro, encontros, mostras, tudo isso aí que foi descontinuado. O núcleo de teatro experimental do TCA que foi destruído, enfim, tudo isso também diminui o mercado de trabalho, fazendo com que fique farinha pouca. E aí, é “meu pirão primeiro”, né?

Se essa sua despedida dos palcos de fato se consolidar, como você gostaria de se despedir?

Eu queria fechar com um pouco de poesia, pois ainda sou artista. não vou mais trabalhar, não vou viver de teatro, não vou trabalhar com teatro, mas eu sou um artista. Então, eu queria me despedir com um trecho de uma canção de Chico Buarque, que eu acho muito oportuna. Enquanto Salvador chora torrencialmente o meu divórcio, eu diria que “bato o portão sem fazer alarde, levo a carteira de identidade, uma saideira, muita saudade, e a leve impressão de que já vou tarde”.