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Poupe-se dos detalhes sórdidos sobre guerra no Oriente Médio

O “jornalismo de personagem” não informa o que importa, deprime e ainda vicia

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 14 de outubro de 2023 às 08:00

Desde que me entendo por gente, o conflito entre palestinos e israelenses já era antigo. Não tinha cobertura ao vivo, mas a gente ouvia falar e estudava na escola, em História. Aquela região é pepino há mais de 70 anos e isso que começou no sábado passado é só mais um episódio da série que antes vinha por escrito e no rádio, apareceu na televisão e, agora, tem cobertura – em áudio e vídeo – 24 horas por dia. Os fatos são esses.

De modo que novidade não há nenhuma, além de, de uns tempos pra cá, sabermos os nomes e detalhes de histórias individuais das vítimas. Só que as vítimas sempre tiveram nomes, profissões, amigos, rostos, amores, famílias e animais de estimação. A gente “conhecer” as pessoas não muda nada por lá. Por aqui, atua na intensidade do que sentimos em relação ao acontecimento. Isso serve pra quê mesmo?

Já avisei ao meu filho que não é pra ficar acompanhando detalhes. Os "ao vivo" estão proibidos. Isso porque duvido que nossos cérebros tenham estrutura para suportar, além dos nossos próprios dramas (naturais na vida de todo mundo), tantos mergulhos em tragédias de pessoas que não conhecemos, mas nos são apresentadas de modo a criarmos suficiente identificação para sofrermos "junto" com elas. Tô fora. Não preciso saber da vida do defunto do outro lado do mundo para repudiar o terrorismo e desejar paz na Terra. Ninguém precisa.

(Quando dizem “estão matando civis” já sei que estão morrendo crianças e idosos, quando se divulga o número de mortos sou capaz de entender que são milhares de tragédias pessoais. Eu sei que são pessoas como eu e já sofro o suficiente.)

O “personagem” tem função no jornalismo, eu sei. A “pessoa comum que encarna a notícia” amplia, aprofunda e incrementa a narrativa. A questão é quando é apenas (ou principalmente) isso. Não vou nem comentar quando é “apenas”, você sabe que me refiro ao fato de, muitas vezes, nem existir notícia. É só lixo. Porém, na cobertura de grandes tragédias, em veículos respeitados de imprensa, acho muito problemático o jornalismo ser “principalmente isso”. Sobretudo quando a gente se acostuma e acha que deve ser assim mesmo. Tem muita gente acostumada, problema é esse.

Tenho pra mim que esse tipo de jornalismo é um dos fatores importantes do nosso adoecimento psíquico coletivo. Essa onda de depressão (e de ansiedades e afins) não devemos apenas aos fatos (o mundo sempre teve problemas) nem tem uma causa apenas. O modo como somos bombardeados com as profundezas de desgraças alheias tem dedo nisso. Só que ninguém arreda nem arredará da exaltação ao drama pessoal porque dá audiência, mesmo que a verdade seja dita: “jornalismo de personagem” não informa o que importa, deprime e ainda vicia.

(Quantos "viciados em tragédias" você conhece, se já não for um deles? Conheço alguns.)

Quanto mais dramático, mais sucesso e quanto mais sucesso, mais dramático fica. Tânatos, sadomasoquismo. É uma troca doentia. A ponto de – muito mais em tragédias nacionais, abordando pessoas pobres e pouco instruídas – ultrapassarem, em muito, os limites da ética. “Como a senhora está se sentindo no enterro do seu filho?”, a gente vê muito perguntarem. Entram até ao vivo. Às vezes eu nem acredito.

Com esse olhar - e aproveitando o turno de meu filho na escola - fiz uma excursão às coberturas da guerra entre Israel e Palestina. Não vou nem citar os canais porque era tudo igualzinho: jornalistas tropeçando nas palavras, engolindo em seco, falando acelerado, ofegantes, excitadíssimos. Personagens com suas dores escrutinadas sem limites. Detalhes, muitos detalhes de como aqueles indivíduos se sentem. Foco no que é pessoal e subjetivo.

A cada personagem, o formal “lamento muito pelo que você está passando” com voz sóbria para, em seguida, ir ao que, para eles, de fato interessa. Não importa o que perguntem, só escuto “me conta algum detalhe sangrento”, “chora, por favor!”, “como era a ferida?”, “as tripas estavam pra fora ou pra dentro?”, “quem gritava mais alto?”. “Necrotesão” é o que vejo. Só faltam gozar ao vivo. Incrível pensar que aquilo flerta com o "entretenimento".

Não faço crítica específica a uma ou outra performance. Eu detestava Datena, não assistia de jeito nenhum, mas #saudades de quando era exceção. Esse é o estilo contemporâneo, tem que aderir pra ser visto. “Colocar emoção”, “fazer chorar”, “trazer personagens”, “contar histórias de pessoas”, “entrar nas casas”, “entreter a audiência”. O que surgiu como “cereja do bolo” virou espinha dorsal, mote, interesse principal e imprescindível. Mudou o jeito de dar notícias. Insalubridade máxima. Tenho preferido Netflix.

Poupe-se dos detalhes sórdidos sobre guerra no Oriente Médio, é o que sugiro. Você ficar “arrasado” com a história de um indivíduo, lá do outro lado do mundo, não ajuda em nada e ainda atrapalha sua vida. Sabe o que é útil? Entender as motivações desses conflitos, o que significa “extremismo”, estudar o quanto a religião faz parte disso. Entender quais são as regras de uma guerra, porque elas existem.

Buscar ler e escutar quem faz análises críticas, sem sensacionalismo. Já é raridade, mas ainda há quem insista e essas pessoas podem te ajudar a não ficar tomando "partido" nas mídias sociais, se expondo ao ridículo. Olha que lindo! Pensar no macro, na movimentação do tabuleiro. Medida protetiva que chama. Da saúde mental. Não, não é egoísmo. Até pra ajudar, quando é o caso, precisamos de algum distanciamento.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo