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América sem norte, e a esperança ao sul

Não me surpreende que gente aplauda Trump, bata continência para a bandeira dos EUA, celebre estratégias de coação, de opressão e domínio do império norte-americano

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 4 de agosto de 2025 às 13:35

Em 2001, estava em Barcelona, quando topei com um trio de argentinos que mochilava pela Europa. Prontamente, quando um deles soube que eu era brasileiro, ficou entusiasmado falando que amava o Brasil e que era fã de Ronaldo. Eu, impregnado por aqueles folclores bestas de rivalidade, desconfiei. Da mochila, única bagagem, mínima, de sua viagem, o argentino tirou uma camisa 9 da seleção brasileira, com o nome Ronaldo, ao fundo.

Anos depois, numa escala de 6 horas por Buenos Aires, fiz a maluquice de sair depois das 22h do aeroporto para apresentar San Telmo à minha companheira, e buscar uma milonga.

O motorista de Uber mostrou-se um apaixonado pelo Brasil, e ainda aceitou, quando foi nos buscar de volta, que eu pagasse em reais, pois ele estava guardando dinheiro para vir pra cá. E ainda esticou a viagem, sem cobrar nada mais por isso, para que ao menos minha companheira visse a Casa Rosada, o obelisco, e mais alguns pontos turísticos da noite portenha.

Mas a noite se tornou mágica, mesmo, foi em San Telmo. Chegamos, depois de trocas de informação que pareciam nos indicar uma boca de fumo, veladas, sussurradas, a um bar, onde a milonga já havia terminado. Mas… Bem, os músicos haviam terminado o concerto, mas estavam sentados entre as mesas dos clientes, tocando junto a eles.

Começou aquela rodada de clientes e músicos puxando tangos, milongas, boleros, de maneira informal. E, num canto, um senhor enfezado, sozinho, com cara de chefe da máfia, bebendo um refrigerante, se bem me lembro.

Lá pelas tantas, ele levantou, pediu pra cantar. Foi das coisas mais belas que presenciei. Ao ponto de, finda sua participação, eu não resistir em ir à sua mesa agradecer-lhe pela beleza que ele me proporcionou. Ele me olhou com aquela cara enfezada, segurou a garrafa estranhamente, e me perguntou se eu era brasileiro.

Por um segundo, pensei: vou tomar uma garrafada.

Engoli seco e assumi meu crime: sou.

Ele se levantou e perguntou se podia sentar com a gente.

Daquele momento em diante, estava junto a uma daquelas pessoas parecidas saídas de um filme de Scola, conversando sobre o Brasil, mostrando foto usando camisa de Lula e falando da filha que tinha morado não sei onde. Em seguida, abriu o celular, buscou a letra de Um dia de domingo e cantou lindamente, em plena madrugada de San Telmo, o clássico eternizado por Tim Maia e Gal Costa.

Não satisfeito, resolveu dar uma volta a pé pelo bairro, com a gente. Praticamente tudo fechado. Mas minha companheira tirou foto com Mafalda no banco, vimos lugares emblemáticos, e depois ele ainda deu uma volta de carro, enquanto o Uber voltava para nos buscar.

A música, a arte, que maneira melhor haveria para as pessoas se conectarem?

Alguns anos se passam, e estava eu a tocar na Casa da Mãe, nos últimos estertores do sarau que fazia lá, e um grupo de latino-americanos curtia o som, cantando, bebendo no meio do salão. Perguntei: argentinos? Eles disseram que eram uruguaios.

Fazia pouco tempo, eu havia visto um trecho do belo concerto de Milton Nascimento que Gabriel Villela dirigiu, postado por alguém em rede social. Tomei conhecimento de uma canção pela qual me apaixonei imediatamente: Guardanapos de papel. Uma versão brasileira de Carlos Sandroni para a música Biromes y servilletas, de Leo Maslíah, compositor uruguaio.

Prontamente, ali, no palco, dedilhei e cantei os primeiros versos da canção. Eles ficaram extremamente felizes, e disseram que um deles sabia tocar. Chamei ao palco. Ele tocou uma parte, junto ao coro de amigos, e desceu para curtir o resto da noite. Quando acabei de tocar, desci e eles ainda estavam lá. Conversamos, trocamos ideias, referências e contatos. Desde então, ensaio ir ao carnaval uruguaio todo ano, sempre falando com Martin, um grande músico uruguaio, o que subiu ao palco, e que tem uma das principais bandas de carnaval de lá.

Por que, especificamente, resolvi lembrar de momentos assim? Estou dirigindo a abertura da XV Reunião de Antropologia do Mercosul. Evento gigante, que será sediado em Salvador, este ano.

Para pensar o repertório da abertura, que a comissão organizadora resolveu arriscar ser um concerto entremeado por falas institucionais, dediquei-me a ouvir mais atentamente o repertório sulamericano, principalmente as indicações de Guillermo, o organizador.

Acabei voltando a Guardanapos de papel. E me vi indo caminhar no Campo Grande com os olhos mareados, deixando-me escapar algumas lágrimas em meio ao caos matutino da cidade. Essas histórias todas me vieram à cabeça. Pensei no quanto o imperialismo cultural criou barreiras, silêncios, preconceitos com nossa grande América.

Estamos muito mais próximos dos equatorianos, chilenos, uruguaios, argentinos, colombianos, que dos EUA. Nossa ginga, nossa música, culinária, essa mistura doida de povos originários, povos arrancados da África, península ibérica e seus matizes mouriscos, heranças ciganas e árabes, tudo vai se tocando, se reinventando, se amalgamando num imenso caldeirão de comportamentos, humores, e, infelizmente, dores que marcaram nossa história de domínios, exploração, escravidão, subalternização e subserviência.

Por mais brega que seja uma música dos EUA, ela será sempre melhor que uma canção latino-americana. Por mais medíocre que seja um filme de roliúde, será sempre um clássico frente às películas da nossa latinoamérica. Seguimos com uma lavagem cerebral em que líderes surgidos do povo, e que tentam melhorar a vida de seu povo, são sempre ditadores corruptos, enquanto os EUA seguem explorando, dominando, ditando as modas, regras, cultura, consumo, e boa parte de nós aceita o carimbo de vira-lata na testa.

Não me surpreende que gente aplauda Trump, bata continência para a bandeira dos EUA, celebre estratégias de coação, de opressão e domínio do império norte-americano. É a gente que acha chique a trilha cantada em inglês, a ida a Miami, os carrões, os arranha-céus, as roupas, estilo ditados pelos filmes, pelas propagandas.

Não me surpreende, mas me entristece.

Quando Jorge Luis Borges soube da revolução russa, ele disse que se entusiasmou com a possibilidade de não haver mais fronteiras, e fez uma cacetada de poemas em louvor aos novos tempos. A história mostrou o contrário, rasgando sua ilusão, e ele rasgando seus versos.

Em vez de rompermos fronteiras em busca de diferenças e semelhanças que nos unam numa latinoamérica plural, livre e irmã, há os que vejam com maus olhos nossa força e singularidade, buscando num padrão imposto e artificial o caminho vira-lata da própria desvalorização das nossas imensas qualidades e belezas.

Sempre que a vida me lembra, eu retomo a esperança de uma canção com todos, como na música de César Isella e Armando Tejada Gomez. E me dá uma vontade imensa de sair a caminhar pela cintura cósmica do sul.

Enquanto os homens exercem seus podres poderes, e gente estúpida, gente hipócrita abana o rabo para o opressor, prefiro dizer que o nome do homem é povo. Latinoamericano. E livre.

E fazer o roteiro e a direção dessa XV Reunião de Antropologia do Mercosul me fez, mais uma vez, lembrar disso.