Gosto não se discute, mas se aprimora

E se a ignorância vem destruindo o país na política, na religião e na estrutura social, não seria na Arte que isso seria diferente.

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  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 16 de abril de 2024 às 10:56

Quando os irmãos Lumière fizeram a primeira projeção de L'Arrivée d'un train en gare de La Ciotat, que não era nada mais do que um trem vindo em direção à câmera, parando numa estação, os presentes se assustaram, até levantaram com medo do trem.

Era uma filmagem em preto e branco, numa projeção improvisada, com imagens sem uma qualidade aceitável, como eram os filmes do período. Mas as pessoas ficaram com medo porque não tinham repertório visual e intelectual para aquelas imagens.

Talvez pareça contraditório aos olhos mais apressados, mas assim como defendo em sala de aula que a obra de arte deva ter camadas de apreciação, para que se comunique com uma plateia que vá de filósofos a engenheiros químicos, defendo que o ideal seria que o apreciador da arte tivesse repertório. Para o bem dele, da Arte e, principalmente, da sociedade.

Explico.

Por um lado, tem sido cada vez mais recorrente que obras de arte citem outras obras de arte. Seja na situação, no estilo, autores sempre citam autores, bem como filósofos e filosofias, acontecimentos e personagens históricos, mitologia, lendas, aforismos e problemas políticos.

Nada disso deveria inviabilizar a apreciação de uma obra de arte. Acho fundamental que o artista, notadamente o de teatro, área em que dou aula, se preocupe sempre em se comunicar com todo e qualquer tipo de plateia.

Aquele sujeito que nunca leu um livro na vida, desconhece história e filosofia, deve ser tocado por uma peça de teatro assim como um doutor em estética teatral germânica. Seria, no mínimo, deselegante, botar uma peça em cartaz e fazer dela um enigma intelectual somente para iniciados. Contudo, se torna, mais ainda, algo arrogante, pretensioso e que fere o princípio básico do teatro, que é criar a magia que é o entre: aquele espaço vazio entre o atuante e o espectador, que é preenchido pela fantasia comunicativa estabelecida entre os dois.

Mas eu não poderia deixar de olhar um outro lado da questão, sob pena de maniqueísmo.

O artista, também, não pode ficar o tempo todo toureando a ignorância. E tolhendo sua criação de mergulhos mais profundos, em diálogo com questões artísticas, históricas, políticas e sociais de maneira mais sofisticada. E algumas das mais belas obras de arte acabam por comunicar muito mais a iniciados do que à maioria, sendo a apreciação estética para os não iniciados muitíssimo limitada.

Entra então uma questão que para mim é a pedra de toque do que entendemos por ensino da arte.

Sem, de maneira alguma, apontar o dedo para os nossos educadores, vítimas também do problema estrutural, e do tempo e valor dado às aulas de arte, mas criticando toda a conjuntura político-social de nossa formação educacional, penso que a maneira como a Arte não é levada a sério acaba por influenciar toda a formação do cidadão.

Por que um jovem não aprende a fazer um soneto como aprende a fazer uma ligação química?

Por que em educação musical, a cada ano o jovem não mergulha ainda mais na sofisticação da criação de compositores, a ponto de poder ouvir um Shostakovich ou um Villa-Lobos, como aprende soma, depois raiz cúbica, logaritmo e problemas mais sofisticados de matemática?

Por que temos que levar a sério as aulas de física, fazendo provas, deveres de casa, estudando mecânica e ótica, até, mas quando fazemos teatro é o momento do lúdico e da diversão, e não ir aprimorando o conhecimento e apreciação das artes cênicas?

Há, inclusive, outro problema, que é o abismo entre a formação inicial em artes e o ensino médio. A criança que estudava artes visuais, teatro, balé, música, de repente rompe sua relação com as artes totalmente, para se dedicar ao ENEM, e depois à faculdade, e de alguma forma todos esses processos interrompidos, mesmo os que funcionam com excelência, são desperdiçados na formação de um cidadão para o futuro. Fica-se capenga de uma parte da formação, a artística, que, sim, é fundamental numa sociedade.

Será, realmente, que um jovem que aprendesse a ler e se deleitar com Fernando Pessoa, Cecília Meireles e Myriam Fraga, e conseguisse escrever um soneto, um martelo agalopado, e amasse os quartetos de Villa-Lobos, gostaria de ouvir ou compor “senta novinha que eu sei que tu aguenta”? Talvez. Mas não só. Ele ao menos teria um repertório para escolher e/ou variar, e não seria limitado pelas parcas referências que lhe chegam.

O problema é que estudar arte mais a sério abre a cabeça, instiga um espírito crítico, permite ter uma percepção mais arguta e sensível da realidade, e isso parece não interessar. E, talvez por isso, justamente, tanta perseguição às artes.

Infelizmente, boa parte das pessoas também não quer. Sabe aquilo de querer dar o melhor e mais oportunidades aos filhos, por exemplo? Poucos são os que se preocupam em incentivar leitura, e contato com outras manifestações artísticas que fujam das referências próximas, dando aos filhos uma amplitude de repertório.

E é uma questão que não atinge apenas o senso comum.

Mesmo um estudante universitário de arte, em sua maioria, não lê, não assiste, não se interessa por nada que fuja de sua bolha. Ele está mais preocupado em maratonar a série comentada nas redes sociais que ver a filmografia de Fellini. Está mais preocupado em ler o romance da moda que conhecer a obra de João Ubaldo Ribeiro. Está antenado com as canções de sucesso, mas não se permite conhecer gênios que mudaram a história da música. Reclamam do currículo, da formação, mas sequer aproveitam o que lhes é ofertado, e nem correm atrás de ter suas próprias referências para trazer à sala de aula. Falta-lhes, justamente, repertório.

Vivemos um momento onde temos acesso a praticamente tudo. Seja pirata, pdf, torrent, hoje em dia tem-se o que seria o sonho de gerações anteriores: a um simples clique, acessar o melhor da arte mundial. Hoje, se tem, e não se tem o interesse de conhecer, quase sempre.

No fim, é toda uma conjuntura contemporânea que corrobora a desgraça.

E ao invés de achar culpados, nós deveríamos buscar compreender quais partes do problema nos competem melhorar.

João Ubaldo Ribeiro, Cecília Meireles, Genaro de Carvalho e Villa-Lobos deveriam fazer parte de nosso repertório básico. Compreender a estrutura de um soneto, a sofisticação de uma sinfonia, o experimento de um quadro, e o mergulho na alma e na política de uma peça de teatro, romance ou poesia, também. Gosto não se discute, mas pode ser aprimorado. Basta ter como referência comidas e bebidas. Quantas pessoas não apuraram seu paladar com vinhos, cervejas, queijos, chocolates, cafés, e hoje em dia mudaram seus gostos? Basta ter acesso, vontade e curiosidade.

Mas, como já disse anos atrás, num outro artigo, há o problema da arrogância da ignorância. Há uma massa ignara que se vangloria de seus antolhos, e acha que sua visão tacanha é o mundo todo, e, fora dele, tudo é mau e desprezível.

E se a ignorância vem destruindo o país na política, na religião e na estrutura social, não seria na Arte que isso seria diferente.

Até porque, sempre que caminhamos rumo ao esgoto, a arte é sempre a primeira a ser jogada na merda.