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Da Redação
Publicado em 4 de julho de 2022 às 06:20
- Atualizado há 2 anos
Até pouco tempo, eu só lembrava da Geórgia como o país de nascimento de Josef Stálin. Na imensa fila infindável de livros que quero ler, duas biografias suas nunca chegaram na frente; e o que li sobre Revolução Russa já fala do ditador fora de seu país de origem.>
Graças a uma plataforma de filmes que assino, tive acesso a um filme georgiano. E então nós dançamos (2019) mostrava a questão da homofobia dentro de um grupo de dança tradicional georgiana. Tomei conhecimento de um país de cristãos ortodoxos, com população do tamanho da de Salvador, e com problemas muito parecidos com os nossos; de Salvador e do Brasil.>
O filme tem lá sua ingenuidade, tecnicamente possui problemas, mas tem grandes atuações e uma sensibilidade tocante, em certos momentos, notadamente. Senti o mesmo com o filme georgiano que vi semana passada, Wet sand, de 2021.>
As características acima, de início, me deixaram na iminência de desistir de continuar, confesso. Mas algo ali parecia me prender. Aquele clima de beira de praia – sim, o filme se passa numa comunidade beira-mar, no caso, o Mar Negro – me remetia à nossa realidade.>
Personagens toscos, frustrados, sonhadores, sensíveis, agressivos, ingredientes comuns que perpassam qualquer comunidade, foram aflorando no filme juntamente a uma sensação de identificação não só com minha realidade, mas também com um autor mais do que especial; Anton Tchekhov.>
Pouca gente sabe, e eu não sabia, até pouco tempo, que o escritor russo divide com Shakespeare o posto de autor mais montado no mundo. De fato, em qualquer capital com políticas efetivas para o teatro, onde haja uma produção pulsante e bem estruturada, é praticamente impossível não se deparar com alguma peça de Tchekhov, ou alguma adaptação sua em cartaz; ou ao menos tendo recentemente acabado temporada ou prestes a estrear alguma.>
Com pouco tempo de filme, não só identificava o tom tchekhoviano dos elementos do filme, como fazia uma relação direta com sua peça que mais amo, e que tive o prazer de montar aqui em Salvador, antes de eu ser aposentado compulsoriamente pelas políticas culturais para o teatro, por aqui.>
Tio Vânia, peça de 1898, também a preferida de Górki, seu contemporâneo, aparece, antes de tudo, no personagem dono do bar Areia Molhada. O ator, inclusive, ganhou o prêmio, por sua atuação neste filme, no Festival de Locarno, um dos mais importantes do mundo. Basta um olhar atento, e vê-se que ele faz uma versão do Vânia, e numa relação com sua funcionária que lembra demais a personagem Sônia, também da peça de Tchekhov.>
Não há citação ao escritor russo em lugar nenhum. Inclusive, como no filme E então nós dançamos, a temática da homofobia vem à tona de novo. Parece ser um tema caro a um país ortodoxo, e algo que sequer é ventilado por Tchekhov em suas peças. Mas vemos Helena, Astrov, Alexandre, os personagens do Tio Vânia pairando sobre a situação do filme. E quanto mais tchekhoviano o filme foi ficando, mais foi me prendendo, e me emocionando.>
Em determinada hora, os pretensos defeitos, ingenuidades, questões técnicas foram se diluindo numa bonita história de um filme simples e sensível.>
A ortodoxia, a intolerância com o diferente, a violência comportamental do macho aliadas à decorrente submissão das mulheres da vila, empurradas ao lugar mais medíocre e tacanho possível, acabam por servir de espelho a um Brasil estranho que ganhou fôlego nos últimos anos.>
O final feliz do filme, com epílogo digno de sessão da tarde, me causou certa decepção, confesso. No entanto, só quem se vê sufocado e sem saída pode testemunhar o que um final feliz pode trazer de bom.>
E é o que espero para este ano de 2022, porque está realmente sufocante ver filmes com o estômago embrulhado por conta das situações, que poderiam ser tão distantes de nós, mas são tão próximas e reais em nossa pátria armada; Brasil.>