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Mariana Paiva
Publicado em 18 de maio de 2025 às 09:10
A foto do fim de semana é um copo de whisky (ou taça de vinho), a garrafa mostrando bem o rótulo, a carteira e a chave do carro. Lembrou de alguém, né? Vá na foto de perfil dele. Ele sozinho. Biscoitando lá e nos stories puxando ferro (se puxar). Viu, né? Agora vá no da companheira, esposa, noiva, namorada, o que for. Tem lá uma foto dos dois, ou deles com as crianças, e na bio um emoticon de aliancinha marcando o @ dele. No dele? Nenhum pio sobre isso. O roteiro é o mesmo: a mulher é invisível, minha gente. >
Em tempos de clean girl, nenhuma novidade. A tendência diz: seja básica, minimalista, se vista com discrição, se arrume para passar despercebida. Chamam isso de elegância, veja só. Identidade ficou fora de moda de repente. Todo mundo vestido de cor neutra, parecendo um exército de mulheres prontas para sumir ao lado de seus homens com camisa de time - essas sim bem pouco aesthetic e discretas. A ele ficam reservados os fins de semana na montanha vestindo laranja cheguei e gritando aú enquanto a mulher vai desaparecendo. Porque o caçador dela não é daquele estilo Largados e Pelados, que vai na força da raiva e faz fogo no sopro, enfrenta crocodilo na mão: ele compra tudo na Decathlon e na internet, jaqueta corta vento, bengala de alpinista da Shopee. E a pobre da mulher ainda tem que arrastar as crianças pra esperar o papai na volta, fazer cartaz. >
Eu sei, os meninos adolescentes também andam já saindo de fábrica vestidos de camiseta e calça preta e tênis branco, tudo em escala industrial. À clean girl que namoram, eles chamam “minha mulher", botam aliança no dedo, e tome-lhe um guarda-roupa entediante que deixaria Mônica (ela mesma, a da Turma) morrendo de inveja. Porque o que importa é a menina sumir em meio à multidão, é não chamar a atenção, é ser quase invisível, e a roupa é só a pontinha do iceberg. Outro dia vi uma marca de roupas femininas com uma coleção inteira em tons pasteis, tudo bem virginal e cafona até dizer chega, que se anunciava assim: “Ela não grita, ela não deixa marcas. Ela não precisa ser notada para ser inesquecível”. Pois é. Não tem nem vergonha de dizer: nossa roupa é um manto de invisibilidade pra você, mulher. >
A que nos serviria ser invisíveis então? Se fosse para escapar das estatísticas, certamente seria bom negócio. Mas não é por aí: aliás, como diz o ditado, “quem muito abaixa a bunda aparece”. O que não falta é discurso de que mulher tem que ser submissa servindo para esconder todo tipo de violência, e nem choca ninguém quando a gente diz que muitas vezes essas palavras vêm de ambientes religiosos, que teoricamente deveriam proteger e cuidar das pessoas. Também não vamos cair no erro de apontar uma ou outra religião: são muitas, viu? Vira e mexe a mulher é vilã da história; seja no templo que for, dá pra ouvir fala machista. Precisa ir longe não. >
Se ser mulheres invisíveis não serve a nós, mulheres, então serve a quem? A que estrutura? A que projeto? Que incômodo é esse que causa nossa voz, nossos batons vermelhos, nossos decotes que não pedem nada além de respeito e passagem? As respostas são fáceis e acessíveis demais, ainda mais nesses tempos de comentários tão toscos e fartos de internet: basta se dedicar a ler cada um deles, quando quem está no lugar de falar é uma mulher. Quando a CEO não é um homem, mas uma mulher, logo aparece quem lhe diga que a parte inteligente de seu trabalho deve ter sido feita por um irmão, um pai, um marido. Ou então que ela devia estar em casa a cuidar dos filhos. Alguém já ouviu um homem ouvir alguma coisa parecida numa empresa? Eu nunca. >
São os viúvos do mundo de antes. Só gostam da companhia dos amigos homens, só ouvem música de homens, adoram ver filmes de homens fortes e musculosos correndo e lutando suados (Velozes e Furiosos já tá no 10, minha gente) e chamam as mulheres de chatas. Casam com elas, com “a patroa”, a que reclama em casa mas socialmente é “a santa", como descrevem os amigos. Ser a invisível então, serve a quem? Adivinhou, né? >
Mariana Paiva é escritora, idealizadora da Awá Cultura e Gente, doutora pela Unicamp e colunista do Correio*>