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Publicado em 26 de abril de 2025 às 06:00
Podia ser nosso vizinho, nosso amigo, o colega de academia, o cara que fala de comida na televisão, mas não: dessa vez o tosco é o galã. Aquele que estava em nove entre dez exemplos de homens que todo mundo queria conhecer, digamos assim, biblicamente. Mas vá comer junto um quilo de sal, já diria a sabedoria de minha avó. No caso dele, pelo visto, não precisou nem de cem gramas pra dar ruim. É um McLanche Feliz, uma cartela premiada de bingo de tudo que a masculinidade tóxica traz consigo, numa embalagem bonitinha, mas ordinária: o galã. >
Que coisa triste é ver quanto tempo demora até uma máscara cair. Porque uma estrutura inteira de desculpas e proteções recai sobre ele, o alecrim dourado, e não sobre suas vítimas, que vão ficando silenciadas pelo meio do caminho. É óbvio que não foi a primeira vez. Muita água passou debaixo dessa ponte, muita coisa ele deve ter aprontado contando com a cumplicidade de muitos. Essa gente que bota a cabeça no travesseiro e dorme, independente do estrago que faz.>
Dando o real nome aos bois, é uma violência você ocupar o mesmo lugar hierárquico que alguém e se achar no direito de dizer como a pessoa que é sua colega deve trabalhar. Pois o alecrim foi e fez, porque é homem, é galã, não teve quem parasse antes. Foi lá, achou uma vergonha boa de passar e passou. Quem tava do outro lado era uma mulher que, independente da atuação dela, foi selecionada para estar ali. Problema um deste ser humano: mansplaining, ou seja, achar que é um grande legendador e ensinador do mundo para as mulheres. Sim, a gente sabe que nem todos, então nem se doa se não for seu caso. Mas convém andar atento. Vira e mexe a vibe professor de Deus aflora por aí, nos trabalhos, nas famílias, na vida em geral.>
E depois a catinga. Se fosse a vegetação, tava até melhor, mas não, é a murrinha mesmo, o fedor. Diz que o alecrim usa talco no quiquiu. Agora veja, uma lapa de homem daquela usando Pompom. Me diga se tem como dar certo? Não tem. Ah, e briga porque o colega de elenco encostou nele - aqui na Bahia então ele ia viver no telequete, porque o que bem tem é gente que fala pegando. Da Feira de São Joaquim ao Shopping Barra, não há bracinho que escape de um carinho na hora que não tem o que você pediu. “Tem não, amor". Mas com ele ia dar ruim.>
Deve ter dado é muito trabalho pro povo que se esforçava pra esconder os b.o.s dele, porque era uma imagem de bom moço à prova de tudo. Até de uma gracinha ou outra. Nesses anos todos, nenhuma notícia de um Rexona de presente em inimigo secreto da emissora, ou eu que perdi porque quase não vejo novela? Fica a dúvida.>
Mas a questão é que pessoas como o galã-alecrim dourado não agem sós. Tem sempre gente que acha que ele vale o que pesa, o que causa, os números que alcança. Nas novelas, nas empresas, nas famílias, sempre temos bons exemplos (ou maus, na verdade) de gente que recebe passada de pano porque performa bem. Porque atinge as metas ou ajuda a atingir, mesmo deixando pelo caminho um rastro de desrespeito. Novidade não é.>
O galã sendo só mais um exemplo disso que nós, mulheres, vivemos todos os dias, e que logo uma meia dúzia de toscos iguais corre pra chamar de vitimismo. Porque tem um mundo em que as mulheres seguem sendo ensinadas a trabalhar mesmo sabendo o que precisa ser feito, mesmo gerindo como ninguém a escassez dos lares brasileiros, as famílias sem pais - que às vezes até estão lá, mas não fazem a menor ideia de quando é a próxima vacina ou o nome da professora da criança. Só mais um dia na vida das mulheres brasileiras, só menos um galã. “Eles passarão, nós passarinho”.>
Mariana Paiva é escritora, jornalista, doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp>