Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Nelson Cadena
Publicado em 14 de julho de 2022 às 05:00
O Brasil de bigodes nasceu na Bahia com a chegada da esquadra de Thomé de Souza, em 1549, o nosso primeiro governador geral; segundo o rosto que lhe foi atribuído por ilustradores, usava um bigode alinhado, comprido, em harmonia e se confundindo com a barba. Não parece factível. A licença poética leva o artista a retocar a realidade. O ilustre fundador da cidade passou nove semanas em alto-mar, sem tomar banho de cuia direito, duvido que os bigodes que estreiam a história do Brasil tivessem o trato apurado e alinhado dos “retratos”.>
Antes do nosso primeiro governador, andaram por estas plagas Pedro Alvarez Cabral e Américo Vespúcio, dois bigodudos de respeito. Cabral emendava o bigode com a barba, Vespúcio com o ar de monge triste, igual, bigode estilo ferradura sobreposto à barba branca. Monge triste só na imaginação dos retratistas, era mais esperto do que as aparências sugeriam.>
Séculos depois, o bigode de Dom Pedro I marcou a Independência do Brasil, nas tintas de Pedro Américo, no célebre quadro que evoca o suposto momento do grito de “independência ou morte”. O monarca erguendo a espada, montado num belo cavalo que os historiadores desmistificando a arte asseguram que era uma mula. O terreno da região não comportava cavalos de raça, exigia animais mais fortes. Dom Pedro I emendava os bigodes com as costeletas, só para dar trabalho ao barbeiro. Pedro Américo, um bigodudo estiloso, entendia da matéria.>
No entardecer do século XIX, um bigodudo golpista derrubou outro bigodudo, assentado no trono por quase cinco décadas. O golpista, nos retratos oficiais, incorporou o estilo Thomé de Souza. Já o imperador de fartos bigode e barba, jovem estreou um bigode imperial ao modismo Czar da Rússia. Idoso, ampliou barba e bigodes, cobrindo quase toda a cara arredondada, os manteve no exílio. Era barbigode dos bons. A República dos bigodes, que estreia com Deodoro da Fonseca e se encerra com Washington Luís, compreendeu 40/41 atribulados e longos anos, consecutivos.>
A velha República foi moldada pelos bigodes de Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Prudente de Morais, Campos Salles, Rodrigues Alves, Afonso Penna, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, Venceslau Brás, Delfim Moreira, Epitácio Pessoa, Arthur Bernardes e Washington Luís; a se destacar o bigode estiloso de casinha de Floriano; os bigodes Terrier de Campos Salles e Afonso Penna, este exibindo elegante cavanhaque; o bigode quase Dali de Hermes da Fonseca e o bigode Chevron de Moreira.>
Getúlio Vargas promoveu uma revolução contra os bigodes e estreou a República Nova de cara limpa, nem tão limpa assim de alguns de seus mandatários ao longo da história, não faça ilações; o pretexto foi acabar com a tradição das oligarquias regionais. Implantou a primeira ditadura para o Brasil chamar de sua. Outros caras limpas seduzidos pelo autoritarismo sem freios, prosseguiram no vício: Castelo Branco, Medici, Geisel, Figueiredo. Promoveram a censura à imprensa, fechamento do Congresso, cassação de mandatos, torturas, assassinatos. Caras limpas de alma suja, os que alma tinham.>
Quem perdeu com a estreia da República Nova foram os barbeiros, que caprichavam no trato do delineamento da cara dos mandatários. Bigodes, ou caras limpas, tanto faz, no exercício do poder foram irmãos siameses. Fingiram governar para todos e governaram para poucos, criaram privilégios e com isso desigualdades, preteriram a educação e estimularam a cultura do conformismo. A cara dos retratos não reflete a realidade. A maioria tinha duas, a segunda não classificável.>
Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras>