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Paulo Sales
Publicado em 31 de maio de 2025 às 06:00
Li outro dia, num post de uma amiga, a seguinte frase do escritor uruguaio Mario Benedetti: “Ninguém nos avisou que a saudade era o preço a pagar pelos bons momentos”. Lembrei dela quando assisti a Eulogy, episódio recente da série distópica Black Mirror. Nele, Paul Giamatti dá vida a Philip, homem solitário e amargurado já no terço final da existência. Um dia, ele recebe uma ligação comunicando o falecimento de uma mulher chamada Carol. Era uma antiga namorada – ou melhor: um amor avassalador, que deixou sequelas em quem ele se tornou. >
A pessoa do outro lado da linha sugere que ele recorra às próprias reminiscências para homenageá-la em uma espécie de memorial virtual, a ser exibido durante o funeral. Isso seria possível através de um equipamento que consegue “entrar” em fotos antigas, transformando-as em ambientes tridimensionais. Philip concorda em participar da experiência e logo recebe o aparelho, com o qual imerge nos velhos registros que mantinha guardados em caixas de sapato. A partir daí, volta a ser confrontado com todo sofrimento da separação, mas também com momentos do mais pleno afeto.>
O curioso é que o rosto de Carol não aparece nas fotos. Ela é sempre vista de relance ou com as feições riscadas, fruto de um acesso de fúria de Philip após o término do namoro. É preciso rememorá-la, resgatá-la, trazê-la à tona. Um processo que causa remorso e arrependimento, além da dolorosa descoberta de que, por um detalhe, eles não prosseguiram juntos. Eulogy é um curto e sensível ensaio sobre amor e saudade, mas também sobre as perdas, frustrações e alegrias que compõem todos os nossos ontens (roubo essa frase de um bonito romance de Natalia Ginzburg que li recentemente. Ela por sua vez a tomou de Shakespeare).>
Ao velho Philip, restaram a resignação e a constatação de que jogou no lixo seus anos mais preciosos. Creio que todos nós, em maior ou menor medida, guardamos alguma sensação de desperdício e lamentamos pelos erros cometidos. Indagamos onde foi parar aquele amor que parecia infinito ou que fim levou o corpo adorado que de uma hora para outra sumiu da nossa cama. Relacionamentos que se esvaíram em ressentimentos, discussões tolas ou na enorme incapacidade de reconhecermos os anseios do outro.>
Mesmo sem o auxílio do equipamento usado por Philip, faço o exercício de me embrenhar em velhas fotos expostas num painel aqui na biblioteca. A mais antiga delas, de quando era criança, mostra meus dois irmãos sorrindo para mim, como se estivessem me tirando sarro. Devo ter uns oito ou nove anos. Estou sério e encaro a câmera com altivez. Estamos de calça comprida num lugar que parece um clube, provavelmente no aniversário de algum parente. Por mais que tente, não consigo resgatar o que sentia naquele momento ou o motivo daquele olhar tão impetuoso.>
Em outra foto, tirada quando tinha 21 anos, estou com dois amigos no Sancho Pança, uma taberna espanhola que frequentei muito nesse período. Estamos rodeados de taças de sangria, pães e tortillas, os rostos sérios e cabisbaixos, como existencialistas tardios. Ao nosso redor, a balbúrdia do bar lotado e o ambiente festivo. Lembro bem que os semblantes sartreanos eram pura pose. Foi a namorada de um deles quem tirou a foto e nos divertimos bastante essa noite. Eu estava solteiro na época, depois de terminar um longo namoro com uma menina por quem fui apaixonado.>
Observo mais uma foto, esta já bem esmaecida pela exposição ao sol e à poeira do quarto. Foi tirada em janeiro de 2003, na varanda de uma casa de praia no Guaibim,>
Baixo Sul da Bahia. Prestes a completar 33 anos, estou ao lado de meu pai, minha mãe, minha mulher e minha filha, então com dois anos. Ela é a única com expressão séria, os demais estão sorrindo.>
Nove meses depois dessa manhã, meu pai estava morto. Não tínhamos ali a menor ideia do que iríamos enfrentar nos meses seguintes, quando descobrimos que ele tinha câncer em estágio avançado. Guardo esse fim de semana como uma linda despedida. Na noite anterior, caminhei com minha mãe até a areia da praia e contemplamos a lua cheia. Depois bebi vinho com meu pai e ficamos todos conversando até tarde. Se pudesse revisitar um momento para viver novamente, acho que seria esse.>