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Paulo Sales
Publicado em 22 de julho de 2019 às 05:01
- Atualizado há um ano
Na semana passada vi a morte de perto. Não a minha, mas a de uma pessoa muito querida. Normalmente controlado, não consegui conter o choro ao ver os danos causados pelo câncer generalizado - e pelos tratamentos usados na tentativa inútil de debelá-lo - sobre aquele corpo frágil à minha frente. Horas mais tarde, em meio ao adeus, me deparei com nomes desconhecidos e datas marcadas com uma estrela e uma cruz em placas de mármore. Algumas existências longevas, outras muito curtas, encerradas há pouco ou muito tempo, que testemunhavam a ausência de sentido desse nosso vagar sem rumo, breve como um soluço.
É a nossa sina. Aos poucos deixaremos de fazer parte da memória alheia e nosso nome vai desaparecer, assim como os vestígios de tudo que fomos. Em outros tempos me apavorei, me desesperei, até ser tomado pela resignação e, talvez, por algum conforto. Afinal, a vida é preciosa, a despeito de suas contradições, frustrações e amarguras. O ato de existir é quase sempre um espetáculo que merece ser devidamente degustado, mesmo quando só restarem migalhas do que um dia foi banquete. A vida nos dá a beleza suprema, inclusive - ou principalmente - em momentos prosaicos, como observar uma cadela acarinhando seu filhote, comover-se ao final de um grande romance, conhecer a cidade onde nossos pais nasceram ou abraçar a filha que adoramos.
Concordo plenamente com o que disse Dostoiévski, através do seu Raskolnikov, em Crime e Castigo: “Se tivesse de viver no alto de um penhasco, numa saliência estreita onde pudesse apenas ficar de pé, tendo à volta oceano, escuridão infinita, solidão infinita, tempestade infinita; se tivesse de permanecer em pé em um espaço de um metro quadrado por toda vida, por mil anos, por toda a eternidade, seria melhor viver assim do que morrer imediatamente. Apenas viver, viver e viver. Vida, seja ela o que for…”
Creio que até os anciãos, desde que lúcidos e sadios, sussurram um mesmo estribilho: “Preciso de mais tempo”. Era o caso de José Saramago, que beirando os 90 anos ansiava por mais uns aninhos sobre a Terra, como confessou no filme José e Pilar. Era o caso do historiador Tony Judt, não tão velho, mas acometido de uma doença devastadora, que lamentava nunca mais poder viajar de trem e parar nas aconchegantes estações do interior inglês.
Além de tristeza e saudade, deparar-se com a morte alheia, como aconteceu comigo semana passada e acontece com todos nós em algum momento, talvez provoque um sentimento de urgência ou mesmo de libertação. Porque todo tempo que temos é só um instante, que traz consigo rugas, cansaço e desalento. Como canta Henri Salvador em Jardin d’Hiver: “Os anos passam, longe é a tenra idade, ninguém pode nos entender”. Aos poucos nossas referências se dissipam, deixamos de ser compreendidos e o mundo se torna um lugar hostil. Aproveitemos, portanto.