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Nilson Marinho
Publicado em 13 de maio de 2024 às 05:00
Em uma das mãos ficava a mamadeira, na outra um aparelho telefônico de última geração que emitia estrondosos e repetitivos sons de desenhos animados. Os olhos da pequena Sofia, hoje com quatro anos, quase não se mexiam, permaneciam vidrados na brilhante e colorida tela. Interação com a família? Quase zero! Pior era tentar arrancar o aparelho telefônico da criança. >
“Eu trabalhava home office, não tinha rede de apoio e estava recém separada. Eu precisava me concentrar no trabalho, mas também precisava cuidar da minha família. No começo, para deixar ela mais calma, ligava a TV e a colocava no carrinho em frente. Ela ficava a tarde inteira”, comenta a mãe de Sofia, a contadora Sara Rego, de 35 anos.>
O comportamento da mãe vai contra o que recomenda a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que orienta que menores de 2 anos não devem ter nenhum contato com telas. Ainda conforme a SBP, aqueles com 2 a 5 anos têm como limite até uma hora por dia. Já os de 6 aos 10 anos a sugestão é que fiquem até duas horas. >
Com o passar do tempo, a tela de exibição diminuiu. Sofia passou a ter acesso ao celular. A mãe começou a consumir informações sobre o quão prejudicial era o excesso de exposição dos pequenos aos eletrônicos e a culpa chegou. >
“Durante uma roda de conversa com amigas, todas relataram que sentiam que seus filhos não se desenvolviam como nós de outra geração nos desenvolvemos. Minha ficha caiu e passei a colocar limites”, completou a contadora. >
Agora, ao invés de perder a tarde inteira em repetitivos vídeos no YouTube Kids, a garota vai à natação às segundas e, às quintas, ao balé, onde tem a chance de interagir com outros pequenos e não apenas com personagens de desenhos animados. A sociabilidade em casa melhorou, confirmou a mãe. >
A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizou um estudo que mostra que, em 2021, quando a Sofia tinha apenas um ano, houve um aumento considerável do uso de telas por crianças e adolescentes. E dentre os 6 mil pais entrevistados, 51% deles disseram que o tempo diário de uso dos filhos passou de quatro horas. Outros 24% afirmaram que os rebentos ficavam grudados aos aparelhos eletrônicos entre duas e três horas por dia. >
Mas o que toda essa exposição às telas pode causar às nossas crianças? Ou em tempo: como evitar que os pequenos não tenham contato com elas, já que nasceram em uma sociedade hiperconectada e, em casa, possuem maus exemplos? Bom, o que os especialistas afirmam é que o uso demasiado de dispositivos, de fato, prejudica o desenvolvimento do cérebro e, no caso de crianças muito pequenas, o atraso cognitivo. >
“Há uma coisa chamada distração passiva, que ocorre quando a criança consome joguinhos e vídeos em que ela não é protagonista, não é estimulada. Ela fica em um estado de distração, desconectada do que está em sua volta. Na brincadeira, por sua vez, os pequenos estimulam a imaginação e outras habilidades que contribuem para o funcionamento ativo do cérebro”, comenta Mara Leal, psicopedagoga especialista em Comportamento Infantil.>
“Cada vez mais tenho ouvido de pais que seus filhos estão sofrendo com distúrbios de aprendizado, se tornando mais impulsivos e incapazes de controlar seus sentimentos. Não estamos aqui dizendo que eles devem ficar longe por completo das telas, é inevitável, mas que os seus pais tenham o senso de regulação”, sugere a especialista. >
Se esses efeitos estão sendo sentidos no seio familiar, nas salas de aula também. Professores relatam que os alunos estão cada vez mais dispersos, ansiosos e com menos habilidade motora. A pedagoga Dida Macedo, especialista em psicopedagogia, leciona há 40 anos na rede municipal da cidade de Ipirá, no centro-norte do estado. Nos últimos anos, notou uma certa tendência dos alunos à agressividade e falta de habilidade com o lápis. >
“Noto que, antes dos celulares serem acessíveis, as crianças chegavam ao quarto ano do ensino fundamental com maior aprendizado. Hoje, muitos são imperativos, com certo grau de agressividade e com alguns problemas psicológicos e de aprendizado. Tudo isso ficou mais acentuado na pandemia. Alguns querem levar o aparelho celular para as salas, o que para nós professores torna-se uma ofensa. Na questão de interpretação, quando usam a oralidade, vão bem, mas não acontece o mesmo com a escrita”, comenta a professora. >
Sule Sampaio, doutora em Educação, pesquisadora da Universidade Federal da Bahia e professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe, reconhece a importância da tecnologia para o aprendizado e diversão dos pequenos, mas ressalta que pais e educadores devem impor limites à excessiva exposição. Ela acredita que é importante oferecer aos pequenos a oportunidade de experiências digitais e analógicas, para garantir um desenvolvimento equilibrado.>
“Temos aqui duas palavras que são essenciais: uso excessivo e proibição. Como pais, educadores e sociedade em geral, sabemos que o uso excessivo de qualquer coisa nos faz mal. A criança é um sujeito de direitos e tem o direito de interagir, produzir, se divertir, se comunicar e brincar no ambiente digital. Não podemos ignorar o fato de que essas crianças nasceram na era digital e não podemos evitar que elas tenham contato ou acessem o mundo online”, comenta Sule. >
“Quero salientar que sabemos que há muitos casos de crianças ansiosas, angustiadas e estressadas, mas não podemos culpar a tecnologia. A pergunta que faço é: que outras experiências esses pais estão proporcionando? Se oferecermos a interação digital como única opção, isso terá consequências. Assim como dar apenas um alimento não é saudável, precisamos oferecer uma vivência plena na cultura digital, mas também entender a importância de permitir que vivenciem plenamente as culturas infantis, levando-as ao teatro, ao parquinho, à praia, organizando tempo para a escola. É preciso entender que tudo é uma questão de dosagem e equilíbrio. E esse equilíbrio precisa ser mediado pelo adulto responsável”, completa a doutora em Educação.>