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Heider Sacramento
Publicado em 20 de julho de 2025 às 20:11
O Brasil se despediu neste domingo (20) de uma de suas vozes mais singulares e combativas da música popular contemporânea. Preta Gil, cantora, empresária, apresentadora e ativista, morreu aos 50 anos e deixa como herança não apenas canções marcantes, mas uma trajetória artística profundamente conectada a pautas sociais e identitárias. Ao longo de duas décadas de carreira, fez da arte um ato político e do entretenimento, uma plataforma de transformação. >
Filha do cantor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, Preta iniciou sua trajetória em 2003 com o álbum “Preta” e, desde então, construiu uma identidade artística própria, marcada por influências do pop, samba, axé e MPB. Muito além do sobrenome, consolidou uma carreira que dialogava diretamente com temas como diversidade, feminismo, liberdade sexual e combate ao preconceito.>
Preta Gil enfrentou luta contra o câncer
Mesmo cercada por expectativas por ser herdeira de um dos nomes mais relevantes da música brasileira, Preta Gil trilhou um caminho autoral. Com hits como Sinais de Fogo, Stereo e Sou Como Sou, ela deu voz a sentimentos, afetos e vivências que por muito tempo foram invisibilizados no mainstream.>
Seu repertório foi abraçado principalmente por públicos que se reconheciam em sua autenticidade, especialmente a comunidade LGBTQIA+. “Sempre fui militante, antes mesmo de saber o que era militância. Meu corpo sempre falou por mim”, declarou a cantora em entrevistas, ao explicar como suas escolhas estéticas e temáticas estavam diretamente ligadas ao ativismo.>
Preta Gil
Entre os maiores exemplos de como Preta Gil transformou suas canções em instrumentos de contestação e afirmação está Sou Como Sou. Lançada em um período em que a pressão por padrões inalcançáveis ganhava força nas redes sociais, a música escancarou, com uma mistura de ironia e firmeza, as exigências impostas pela sociedade. Versos como “tem que ser branco, tem que ser alto, tem que ser magro, tem que ter saldo no banco” evidenciam uma crítica direta ao ideal normativo, enquanto o refrão reafirma com orgulho: “Sou como sou, não quero me encaixar em nenhum padrão”. A faixa se tornou um verdadeiro manifesto contra a exclusão e um hino de liberdade individual, especialmente para quem sempre se viu à margem dos padrões. Em vez de se render às expectativas externas, Preta propôs um novo olhar sobre beleza, valor e pertencimento.>
Preta unia arte e posicionamento com naturalidade. Em um Brasil marcado por desigualdades e retrocessos sociais, sua voz se destacava não apenas pela potência vocal, mas pela coragem de se manifestar com clareza e firmeza, inclusive nas redes sociais, onde enfrentava ataques com a mesma força com que defendia suas bandeiras.>
Em 2009, a artista levou seu engajamento para as ruas ao fundar o “Bloco da Preta”, que rapidamente se tornou um dos maiores e mais representativos do carnaval carioca. Com forte presença de mulheres, pessoas negras, gordas e LGBTQIA+, o evento se consolidou como um espaço de celebração da diversidade, alegria e resistência.>
“Meu bloco é um grito de liberdade. É onde todo mundo pode ser quem é, sem medo”, disse Preta em entrevista à Folha de S.Paulo. O trio da cantora virou uma passarela para corpos diversos, funcionando como um verdadeiro manifesto a céu aberto, onde música, fantasia e política se misturavam. Ano após ano, o bloco reunia multidões no centro do Rio de Janeiro e firmava-se como símbolo de uma cultura carnavalesca comprometida com pautas sociais.>
Mais do que cantora, Preta Gil se tornou símbolo de resistência ao transformar seu corpo em linguagem de enfrentamento. Foi vítima de gordofobia, racismo e machismo, mas respondeu com orgulho, visibilidade e discurso.>
“Ser mulher, negra, gorda e artista neste país é um ato político diário”, escreveu nas redes sociais, em uma de suas postagens mais compartilhadas. Seu posicionamento abriu caminhos para outras artistas fora dos padrões tradicionais e incentivou seguidores a ressignificarem suas próprias vivências.>
Suas campanhas em defesa da autoestima e da aceitação corporal ganharam destaque na mídia e contribuíram para a ampliação do debate público sobre diversidade e padrões de beleza.>
A morte de Preta Gil marca o fim de uma presença artística que desafiou convenções e ampliou espaços. Sua trajetória foi marcada por coragem, afeto e autenticidade, elementos que continuam vivos na memória coletiva e na luta de tantas outras mulheres e pessoas marginalizadas.>
Seu nome passa a figurar entre os grandes da cultura brasileira não apenas pela música que produziu, mas também pela transformação que provocou. Um legado vivo, plural e combativo.>