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Fernanda Santana
Publicado em 7 de maio de 2023 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Semanalmente, Roseane Pereira, 43 anos, acompanha a filha, diagnosticada com anorexia, em consultas. Está acostumada a ver crianças e jovens com transtornos alimentares, mas, em uma manhã de novembro passado, precisou sair do hospital ao ver uma criança de 8 anos. Aniversariante do dia, ela se negava a tocar no bolo que a mãe havia levado. Parecia ter medo. “Desabei de chorar”, lembra a engenheira agrônoma. >
As cenas se repetem no ambulatório: há aquelas que comem só quatro tipos de alimento, meninas que, desde os 9 anos, se preocupam em excesso com o peso ou quem come por compulsão. A unidade, no Hospital das Clínicas (Hupes), no bairro do Canela, em Salvador, é a única especializada em transtornos alimentares no Sistema Único de Saúde na Bahia. >
Nos últimos três anos, profissionais de saúde do ambulatório têm observado com preocupação a chegada de pessoas cada vez mais jovens. “Antes, eram mais adolescentes e adultas, mas temos visto pessoas ainda mais jovens, crianças”, perfila a nutricionista Carla Magalhães, doutora em Nutrição pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e coordenadora da ala de Nutrição. >
Há um ano, uma revisão sistemática de 53 estudos, realizada pelo International Journal Of Eating Disorders, já havia sinalizado um crescimento de admissões hospitalares de crianças com transtornos alimentares. Entre 2019 e 2021, as internações gerais cresceram 48%. As pediátricas aumentaram acima da média entre adultos: 83%.>
Na Bahia, os números ainda indicam subnotificação. Oficialmente, a Secretaria Estadual de Saúde calcula um internamento por transtorno alimentar neste ano. Só na enfermaria do Hupes, foram cinco internamentos provocados por essa razão. Por dia de atendimento no ambulatório, há 12 pacientes – entre novos, triagem e retorno. >
Essa disparidade entre realidade e estatística pode acontecer, segundo especialistas, porque os registros são feitos como desnutrição e/ou desidratação.>
A filha de Roseane esteve prestes a ser internada em meados do ano passado. “Se ela perdesse mais um quilo, ia suplementar [nutrientes] por sonda”. A menina recebeu o diagnóstico de anorexia em junho passado, aos 13 anos. Repentinamente, ela só queria comer frutas. A mãe estranhou e buscou um médico, que achou a atitude “precipitada”. >
Em dois meses, a menina saiu dos 50 para os 42 quilos e o diagnóstico de anorexia foi confirmado – a pré-adolescente admitiu não querer comer por medo de “parecer maior”.“Foi uma descoberta rápida e angustiante. Mas ela quis ajuda, dizia que não conseguia parar. É muito doloroso, você vê uma criança como ela, feliz, ficar abatida”.Desde setembro, a adolescente intercala o acompanhamento entre a rede pública e privada, onde o tratamento custa R$ 1 mil por semana. >
A partir do dia 29 deste mês, o Grupo de Atuação em Transtornos Alimentares, criado por profissionais do ambulatório no ano passado, promove atividades de conscientização sobre transtornos alimentares. Isso porque, o dia 2 de junho é o Dia Mundial de Conscientização de Transtornos Alimentares.>
Tratamento é ‘cansativo’ e dura anos>
Na sala de espera do ambulatório, não há televisão ou revistas. Cada um se distrai como pode. A filha de Roseane leva um livro. A leitura é interrompida pela primeira de ao menos três consultas em uma manhã.>
As portas da unidade abrem às 7h. Entre os pacientes, 90% são mulheres. Se seguirem o tratamento, elas retornarão ao local por cinco a sete anos. >
No início, farão o percurso semanalmente. Conforme evoluírem, as idas ficam espaçadas. Não há, no momento, fila de espera pelo atendimento. Para ser atendido, é preciso vir encaminhado por uma unidade básica de saúde.“Nosso tratamento é conversar, educar sobre o transtorno. Todo mundo da enfermaria é treinado. Você não pode dizer, por exemplo, que a pessoa com anorexia está mais cheinha. Elas têm uma chance de cura de 70%, mas é um tratamento cansativo”, explica a gastroenterologista pediatra Luiza Cabus, chefe do serviço.Cada paciente tem uma demanda e a participação das mães, pais ou cuidadores é parte do processo. Nas entrevistas diagnósticas com psiquiatras, são identificados sintomas como restrições severas aos alimentos e discordância da ideia entre a imagem real e a idealizada sobre si. >
Em tratamento, eles são reintroduzidos a alimentos, recuperam uma visão mais real sobre si. A equipe de cuidado deve ser multidisciplinar, com nutricionistas, médicos e psicólogos. Hoje, a pessoa mais jovem em atendimento tem 4 anos. A mais velha, 59. >
A unidade abriu em 2006, quando Luiza Cabus concluiu o doutorado em Imagem Corporal entre adolescentes. “As pessoas atendidas ainda sofrem preconceito. Como acontece com outros transtornos mentais”. >
Os transtornos alimentares são considerados transtornos mentais e são multifatoriais, provocados por aspectos biológicos, genéticos, ambientais, estresses pós-traumáticos (como abusos), bullying, ambiente doméstico e saúde mental familiar. >
Os mais comuns, na adolescência, são a Anorexia Nervosa (preocupação exagerada com o peso, que leva a problemas físicos graves), Bulimia Nervosa (consumo de alimentos seguido por compensação, como vômitos) e Transtorno da Compulsão Alimentar (ingestão descontrolada de alimentos). Na infância, o mais recorrente é o Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo. >
Sofrimento mais cedo>
Em três meses do ano passado, a psicóloga Carina Magalhães viu três pacientes, com idade entre 11 e 15 anos, serem internados por complicações provocadas por transtornos alimentares – como desnutrição. Desde 2008, ela, que é mestre em Nutrição pela Ufba, atende crianças e adolescentes com transtornos alimentares.>
Para Carina, os índices de transtornos alimentares refletem a infância e adolescência atuais. Ambas as fases, repletas de descobertas e transformações biológicas, psíquicas a sociais, têm sido vividas sob hiper estímulos, exigências (crianças podem, por exemplo, assimilar a preocupação exacerbada de pais com os alimentos) e no período mais imagético da história. “É uma geração icônica. Os vídeos, as curtidas, são reforçadores se você estiver no padrão da magreza. Se não estiver, pode haver problemas na constituição da autoimagem”, explica. Os números também refletem, para ela, os impactos psíquicos da pandemia da covid-19. “Em momentos em que as crianças se reorientariam socialmente, foram privadas disso.">
Segundo estudo publicado na revista científica Jama Pediatrics, em fevereiro deste ano, uma em cada cinco pessoas com idade entre 6 e 18 anos apresenta alguma desordem alimentar. A idade média do início dos distúrbios tem sido 12 anos. >
Pouco antes, aos 11, Giovanna Sá, 23, expressou seu transtorno alimentar pela primeira vez. Em uma madrugada, abriu a geladeira e comeu tudo dentro dela: de feijão a pão.“Não era por prazer, era pelo mastigar. Lembro que me senti muito mal depois. Senti nojo de mim. Parecia que eu tinha cometido um crime”.Os episódios de compulsão se sucederiam, mesmo após os avós a levarem para médicos e nutricionistas. As novas restrições só pioravam o quadro. Só há dois anos, Giovanna recebeu o diagnóstico de transtorno de compulsão alimentar. A compulsão independe do peso corporal da pessoa.>
A estudante agora acompanha o crescimento da prima, Pietra. As duas são como irmãs mais velha e caçula. Aos 8 anos, com colesterol alto, a criança iniciará uma dieta. >
Há duas semanas, Pietra disse a Giovanna: “Nunca mais vou comer pão com manteiga”. Giovanna respondeu. “Falei que não era para sempre. Não quero que ela cresça com culpa relacionada ao alimento como eu”. O Tare é o mais jovem dos transtornos alimentares: foi reconhecido em 2013 (Foto: Shutterstock) Repulsa à comida>
À mesa, os gêmeos Dante e Olívia, 4 anos, têm comportamentos opostos. O menino come de tudo. Já a garota detesta comer. Um dia, ela disse à mãe: “Não gosto de nada”. A restrição apareceu depois que os dentes nasceram. “Antes, ela comia normal”. >
A alimentação de Olívia se resume a sete alimentos, servidos em porções minúsculas. Eles são acrescidos de suplementos solúveis para compensar a falta de nutrientes.>
A mãe dos gêmeos, Luciane Azevedo, 43, conversou com pediatras e ouviu recomendações do tipo: “Deixa com fome pra ela comer”. “Deixar uma criança sentir fome achando que ela vai aceitar comer um prato de feijão é uma ilusão, porque ela fica mais irritada e aí só aceita a mamadeira pelo efeito calmante. Insisto na oferta das refeições normais, mesmo esperando uma recusa”.A designer nunca tinha escutado o termo “transtorno alimentar restritivo evitativo”, até a conversa com a reportagem.“Muitas mães rodam por vários médicos, sem ter respostas. Muitos pediatras não conhecem essa terminologia, é importante que a gente fale sobre isso”, explica Carla Magalhães, nutricionista no ambulatório do Hupes.O Tare é o mais jovem dos transtornos alimentares. Enquanto anorexia, bulimia e compulsão alimentar foram definidos pelo menos desde os anos 50, ele só foi reconhecido em 2013. Restrições não significam transtorno alimentar e é até esperado que crianças criem seus repertórios, façam escolhas. “É diferente de ter aversão ao alimento, odiar comer”, diz Carla. >
Os sintomas podem incluir até isolamento: é comum que crianças com Tare evitem eventos, como aniversários, onde há diversidade de alimentos. O transtorno evitativo pode ser desencadeado, em indivíduos pré-dispostos, depois de traumas, como engasgos. No ambulatório, são considerados suspeitos casos em que crianças só comem 12 alimentos.>
Desde 2015, estudos têm avançado ao mostrar a relação entre o Tare e a anorexia, na adolescência. Todos são unânimes em afirmar que não adianta que os pais proíbam ou chantageiem os filhos para que eles comam – o efeito pode ser o oposto do esperado. >
No ambulatório, as equipes tentam romper o ciclo do transtorno que perturba crianças e adolescentes. Há uma espécie de mantra no tratamento, que Carla compartilha: “É como se o transtorno alimentar fosse uma voz amiga. Você tem que se acostumar a não dar ouvidos”. >
5 PASSOS PARA RECONHECER O TRANSTORNO ALIMENTAR>
O que é transtorno alimentar (TA)? >
É um transtorno de caráter mental, em que há perturbação no comportamento relacionado à alimentação, comprometendo a saúde física e psicossocial da pessoa. São classificados como TA as seguintes condições: Alotriofagia (Pica), Transtorno de Ruminação, Transtorno Alimentar Restritivo/Evitativo (Tare), Anorexia Nervosa, Bulimia Nervosa e Transtorno de Compulsão Alimentar >
Como são diagnosticados? >
As equipes de saúde levam em consideração as particularidades de cada caso: por exemplo, sintomas como restrições severas aos alimentos podem sugerir o Tare, a discordância total da ideia entre a imagem real e a imagem idealizada sobre si pode indicar anorexia nervosa.>
Existem fatores de risco? >
Segundo a Organização Mundial da Saúde, os transtornos alimentares são um conjunto de doenças psiquiátricas de origem genética, hereditária, psicológica e social. Eles podem ser desencadeados/intensificados por momentos de crise, depois de traumas ou com base no ambiente familiar. >
Como perceber? >
É preciso ficar atento aos sinais. Sobretudo entre crianças, há uma fase de “neofobia” quanto aos alimentos: é comum que elas rejeitem certas texturas ou sabores. O problema é quando elas restringem intensamente o repertório alimentar. É necessário prestar atenção aos discursos das crianças e adolescentes, como preocupação excessiva com alimentos.>
O que é possível fazer - e o que não fazer?>
Chantagem, ameaça, proibicionismo... Todas essas estratégias devem ser evitadas pelos pais. A escuta é o melhor remédio – quando possível. Se sua(seu) filha (o) apresentar algum comportamento suspeito, pergunte o que está acontecendo. Lembre-se de que você, enquanto cuidador(a) é um exemplo. A procura de especialistas na área é fundamental.>