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Luiza Gonçalves
Publicado em 19 de junho de 2025 às 12:42
Buscando um recomeço após sobreviver a uma violenta operação policial no seu bairro, o jovem Maurício muda-se de Salvador para a Ilha de Itaparica. Lá, reconta sua ancestralidade ao receber chamados espirituais que o levarão aoculto a Baba Egun, enquanto enfrenta um embate contra o racismo religioso que ameaça a comunidade local. Criativa e instigante, essa é a premissa do thriller Sob o Signo Ancestral, história em quadrinhos baiana escrita por Lucas Ribeiro e ilustrada por Daniel Cesart, lançada na última terça-feira no Goethe-Institut. >
Escritor e roteirista, original do bairro da Caixa D'Água, em 2022, Ribeiro foi um dos artistas da palavra selecionados pela Fundação Cultural do Estado da Bahia para passar dois meses de intensa criação em uma residência artistica no Instituto Sacatar, localizado em Itaparica. Durante esse periodo, suas vivências das ruas soteropolitanas fundiram-se com modos e fazeres socioculturais do território da Ilha, o que culminou em um quadrinho banhado de ancestralidade e memória. "Meu trabalho parte de um desejo profundo de fabular a partir do real. E, principalmente, de criar a partir do lugar onde estou e do que vivencio", sintetiza.>
A temática central na narrativa gira em torno da conexão do protagonista com a religião de matriz africana, que inicialmente parte de visões até o seu encontro com o culto aos egunguns e seu legado como Ojé (sacerdote). "O culto aos egungunsé uma cerimônia que celebra os ancestrais como presenças vivas, guardias da comunidade. Em Itaparica, essa espiritualidade se manifesta especialmente no Alto do Bela Vista, onde estão localizados os terreiros mais antigos dedicados aos Egunguns. Ali, grande parte da população participa diretamente do culto. São familias que mantém essa tradição há gerações, passando saberes, histórias e responsabilidades", explica o autor.>
Retratando a ascensão de um governo pautado no conservadorismo que ameaça a liberdade de prática religiosa em Itaparica, Sobo Signo constrói em suas páginas uma crítica social sobre racismo e intolerância. A missão de equilibrar entretenimento e política no texto foi um dos maiores desafios e motivações do projeto, segundo Ribeiro: "Eu não queria que Sob o Signo Ancestral fosse apenas uma denúncia. Quis construir uma narrativa que tocasse, inquietasse e, ao mesmo tempo, oferecesse possibilidades de reflexão. Acredito que, quando a mensagem política nasce da vivência dos personagens e do universo que eles habitam, ela se torna ainda mais potente".>
Visualidade>
Para representar a espiritualidade em Sobo Signo Ancestral, Ribeiro conversou com lideranças religiosas, participou de celebrações com o máximo respeito e contou com um aliado essencial: a visualidade a partir dos desenhos. "Os quadrinhos permitem uma fusão potente entre palavras e ilustrações, algo essencial para abordar as camadas simbólicas, espirituais e históricas dessa narrativa. Além disso, o formato amplia o alcance da história, chegando a públicos diversos, inclusive jovens leitores, sem perder densidade ou profundidade", defende.>
Responsável pelas ilustrações do projeto, Daniel Cesart acompanhou o processo de visitas e conversas para a construção da história ao lado de Ribeiro, trazendo, a partir de diferentes técnicas de pintura, traçado e sombreamento, o contraste e o complemento entre material e espiritual, natureza e urbano. Ele exemplifica com as cores:>
"Cada lugar e estação tem uma cor que predomina. Como a história começa no verão e se desenvolve em Itaparica, sugeri a cor laranja para representar a cidade e o clima. Como o personagem principal passou por uma situação traumática, optei por usar 'brushes' aquarelados e de giz de cera para mostrar o estado de espírito dele, e as cores azul e vermelho para fazer alusão ao que causou o medo em Maurício. E, para o plano espiritual, a sugestão foram várias cores por entender que representa o Orum.">
Vencedor do 36° Troféu HQ- MIX, nas categorias Novo Talento Desenhista e Publicação Independente Edição Única, Cesart destaca ainda a importância de trabalhos como Sobo Signo para a representação da força da produção autoral baiana nos quadrinhos: "O Signo traz um pouco da minha revolta com a invisibilização que nós, autores nordestinos, sofremos, as condições nunca são favoráveis e vira e mexe somos taxados como 'arte regional'. Fazer O Signo e meus outros trabalhos vem desse lugar de mostrar que estamos aqui e não vamos sair", defende. >