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Reconciliação ou afastamento total: como será o futuro das famílias que brigaram nas eleições

Há quem busque apaziguar, mas muitos acreditam que volta à convivência não deve acontecer

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 5 de novembro de 2022 às 05:00

. Crédito: Ilustração: Quintino Andrade

Nos dias que antecederam ao segundo turno da eleição, o grupo da família da médica Rhanna Santos, 30, estava em ebulição. O convívio pacífico nos últimos quatro anos, apesar de eventuais discordâncias, começou a dar lugar a outro tipo de postagem - mensagens políticas de cunho religioso até fake news do nível mais grave. O ápice aconteceu na noite do dia 30, logo após o resultado das urnas: a parte dos parentes que vive em São Paulo começou a criticar os que moram na Bahia.    

Com uma dose de xenofobia, os comentários atribuíam o resultado apenas a eleitores do Nordeste. “Falavam coisas tipo ‘nordestino não sabe votar, por isso não sai do lugar’. É muito estranho sentir que existe um racha, sendo que são pessoas que têm pais nordestinos que foram servir de mão de obra lá em São Paulo. Eu tenho temperamento forte, então tento me calar. Mas em outros momentos, tive que abrir a boca, porque o lado da família que continua aqui foi o lado que mais foi para o ensino superior, que formou médicos, advogados, engenheiros, pessoal de TI”, diz. 

Era a deixa para que a guerra fosse instalada. Outros membros da família que vivem no Nordeste também reagiram, assim como as primeiras gerações dos hoje sudestinos. A mágoa tocou especialmente os mais velhos, que se ofenderam com a diminuição do povo nordestino. Diante da desavença, restou a Rhanna o papel conciliador e ela foi buscar os mais aflorados em conversas individuais. “Antes de tudo, foi para tentar esclarecer algumas falas e trazer o vínculo familiar de volta. Deixar claro que não é eleição nenhuma que tem que passar por esse vínculo, que família é família. Fiz a mediação, mas reforçando o que penso sobre aquele discurso, que foi xenofóbico, racista e intolerante. Foi muito difícil, mas agora parece que estamos nos acertando novamente”, contou a médica, quando conversou com a reportagem no meio da semana. O relato de Rhanna ajuda a compreender um pouco do contexto vivido por muitas famílias - em especial, na última semana. Depois de uma das eleições mais tensas de que se tem notícia no Brasil e de dias de atos antidemocráticos questionando o resultado nas urnas, houve quem, como ela, quisesse apenas pacificar os ânimos. 

Na mesma noite em que a família de Rhanna discutia, o presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva (PT) fazia um apelo pela reconciliação em seu primeiro discurso após derrotar Jair Bolsonaro (PL). “Não interessa a ninguém viver numa família onde reina a discórdia. É hora de reunir de novo as famílias, refazer os laços de amizade rompidos pela propagação criminosa do ódio”, disse, após enfatizar que não existem ‘dois Brasis’.

Para muita gente, porém, a forma como as coisas aconteceram nesse pleito são um indicativo de que é hora de seguir caminhos separados. Há quem diga que está muito cedo para um retorno de convivência; há quem pense, ainda, que essa convivência nunca vai voltar. “Quando as pessoas assumem determinada posição política, isso diz muito sobre como elas pensam, quais são os seus valores. Isso favorece que a gente se depare com algumas incompatibilidades”, explica o psicólogo Elídio Almeida, que atua com terapia de casais e de famílias. 

Desconfiança Em geral, a maioria dos problemas acontece nos grupos do WhatsApp ou em outras redes sociais. A professora Lorena*, 44, chegou a pedir que uma prima evangélica a deixasse em paz - com essas palavras - tamanho o assédio que a outra fazia no Instagram para defender o seu candidato. De acordo com ela, 99% das mensagens eram fake news. Mas Lorena também não ficou imune ao WhatsApp. A primeira situação ocorreu na eleição de 2018 e, quando chegou até a sair do grupo da família materna. 

Em 2020, porém, com a pandemia, os parentes se reaproximaram e ela retornou ao grupo. Até que, este ano, a coisa degringolou de postagens políticas. A professora pediu que todos evitassem publicações assim; em respeito aos demais, ela também não postaria. Lorena parou, mas o outro lado teria continuado. “A convivência tem sido chata. A gente fica naquela desconfiança. Perdemos a naturalidade”, reflete. 

Só que o pior episódio aconteceu com o próprio marido. Identificado com a esquerda durante boa parte da vida, o homem passou por uma transformação a partir de 2020. De católico, se converteu à igreja evangélica. Além de focar muito na religião, começou a só consumir meios de comunicação associados à igreja, como a Rede Record, ou que eram mais alinhados ao bolsonarismo, como a Jovem Pan. 

“Tem três, quatro, cinco meses, no máximo, que ele foi definindo a postura dele. É muito atual”, diz. No domingo de eleição, os dois foram votar juntos. No retorno para casa, já tiveram uma discussão sobre machismo em que ele se ofendeu e saiu incomodado. Os dois tinham parado de se falar e, quando ela conversou com o CORREIO, no meio da semana, permaneciam assim. “Provavelmente não demora tanto, mas vamos ver o que vai acontecer. A gente vai decidir com relação a essa convivência”. 

Com os familiares, há um racha maior. No futuro, Lorena diz que pretende buscar uma reconciliação - mas não agora. Ela considera que ainda é cedo.“Estou refletindo muito com quem eu quero me reconciliar. Tenho pensado muito sobre a questão dos preconceitos que as pessoas têm e não casam com minha visão e postura. Parece que, depois dessas eleições, as pessoas mostraram quem são”, pondera. Fugindo da briga A funcionária pública Flora*, 40, é do tipo que não gosta de discutir. Explica que até se posiciona, mas não entra nas discussões. A treta foi principalmente no grupo com o lado paterno da família. Os que votaram no candidato derrotado começaram a enviar mensagens consideradas ‘sombrias’ por ela, quanto ao futuro do país. Os apoiadores do vitorioso, em seguida, responderam às provocações. 

Flora manteve a postura de se distanciar da briga. “Prefiro deixar o outro lado falando só. Ninguém está muito disposto a ouvir realmente o que o outro tem a dizer, por isso, não vale a pena discutir”, avalia ela, citando que os posicionamentos políticos têm sido os mesmos desde 2018. 

Nos últimos dias, porém, com ânimos mais acalmados e sem mensagens de teor político, ela já vislumbrava um novo clima.“Como as discussões ficaram no âmbito do WhatsApp, não acredito que haverá problemas maiores para voltar a relação - claro que cada um com seu posicionamento” . Romper de vez também não é uma opção para a publicitária Isa Marta Lopes. Segundo ela, não houve nenhum momento em que se sentiu desrespeitada pelos parentes e amigos que tinham pensamento oposto ao seu. Isa diz que não viu necessidade de entrar em discussões, até porque sabia que as eleições acabariam. 

“Acho que é natural que cada pessoa tenha seu jeito e enfrente de uma forma diante de tudo que esse país viveu”, afirma ela, que defende que deveria ter havido mais respeito de forma geral. “Posso até mesmo ser criticada em alguns momentos por ter essa passividade, por essa forma de ver a realidade. Acredito que 2022 foi um ano desafiador para todos nós, mas a gente está aqui para fazer um país melhor, independente de como a gente encare”, acrescenta. 

Além da política Quando o problema vem de outras eleições, é difícil pensar em uma reconciliação tão rápida. Esse é o caso da bióloga Carina*, 34, que começou a notar os primeiros indícios de tensão política entre os parentes ainda na longínqua eleição de 2014. Naquele ano, Dilma Rousseff (PT) venceu Aécio Neves (PSDB) no segundo turno, enquanto apoiadores dela eram chamados de mortadelas e os dele, de coxinhas. Carina estava em um grupo de WhatsApp com cerca de 30 pessoas da família e passou a ser criticada por suas opiniões. 

Ela costumava apontar quando alguém publicava notícias cujas fontes não eram seguras. Mas o problema saiu das redes para a vida real quando foi abordada por um tio, em uma festa de família, por ter postado um meme sobre Paul McCartney ter vindo mais vezes ao Brasil durante os governos petistas. 

“Era uma brincadeira, uma correlação que obviamente é uma coincidência”, lembra, citando as críticas que recebeu. “Ele ainda me disse que deixa de contratar muita gente por causa ‘dessas merdas que vocês jovens postam’. Fiquei chocada. Esse tio nem usa redes sociais, então eu devo ter virado pauta entre ele e meus primos. Nesse dia, deletei todos os familiares das redes”, lembra. 

Até ali, a família era “grudada”. Estavam juntos em todos os fins de semana, feriados e aniversários. Aos poucos, ela se afastou por conta de política e diz que percebeu, ao longo do tempo, que tomou a decisão certa. “Essas pessoas que me acusavam de não respeitar a família, hoje não prestam nenhum tipo de assistência a meu pai e a meu irmão, que mantiveram contato com eles num momento que a gente precisava”. 

A mãe de Carina - que tem parentesco de irmã, cunhada ou tia dessa parte do grupo - tem uma doença degenerativa.“Nem uma visita fazem. Se fosse só a discordância política, talvez eu tivesse me reaproximado um pouco. Mas hoje vejo que a discordância é de valores. Não tem amor ou carinho que sobreviva a tamanho descaso”, desabafa. Desfecho Quando escuta dos pacientes relatos quanto a terem percebido novas características entre os familiares com as quais não concordam, o psicólogo Elídio Almeida diz que costuma dizer questionar se as mudanças de fato são recentes ou já vinham acontecendo e não foram percebidas. Não é incomum que isso aconteça, inclusive, entre casais. 

“Seria importante refletir se algumas dessas situações já estavam presentes. Às vezes, já estão insatisfeitos e acabam tendo essa questão política como um motor. Seria a gota d’água”, explica. 

Ele acredita que há situações em que a reconciliação é mesmo mais provável. Um dos aspectos que pode influenciar nesse desfecho é a forma como os envolvidos se comportaram durante o período de desavenças. Se chegaram a ofensas pessoais, é bem possível que a situação esteja deteriorada. 

“Tenho até questionado algumas pessoas no consultório a respeito do modo como candidatos se portam em um debate político. Eles vão lá mostrar suas ideias, mas sempre que há ofensa pessoal, (o outro) tem direito de resposta. A gente pode falar sobre comportamentos e situações, mas evitar ofensas pessoais”, sugere. 

Em outros casos, porém, os ideais individuais vão mesmo ter um peso maior. “Se de fato a pessoa tem um valor diferente do meu, que impossibilita, ainda que eu esteja disposto e a outra parte não esteja, compete a mim uma ação de respeito”. Para o psicólogo, um dos grandes desafios é conviver com a diferença. “A polarização política trouxe muito a discussão de como a gente vive em bolhas e prefere se relacionar com pessoas que pensam igual a nós”. 

Conciliação é importante também para a economia

A pacificação dos ânimos se tornou ainda mais central no debate porque não envolve apenas o âmbito individual ou familiar. A conciliação é muito importante para garantir a governança de um país, como explica o economista Gustavo Casseb Pessoti, presidente do Conselho Regional de Economia da Bahia e conselheiro federal de Economia. Até para a economia avançar, não é interessante ter um clima de tensões políticas. 

A história recente do Brasil só reforça essa tese: em 1986, o governo de José Sarney lançou o plano cruzado para estabilização e controle da subida de preços. Naquele primeiro momento, a proposta ganhou legitimidade: tanto governo quanto a população pareciam unidos com a percepção de que a inflação seria controlada. No início, funcionou. Quando a inflação parou de ceder, contudo, o governo perdeu a sustentação. 

“Veio (Fernando) Collor com o plano Collor, que era extremamente doido. Ninguém sabia o que era. Ele perde a sustentabilidade do governo no primeiro ato, quando sequestra os ativos financeiros e quebra o clima de conciliação popular”, lembra Pessoti. 

Facilitou, assim, a chegada de Fernando Henrique Cardoso, com o Plano Real. Segundo o economista, ainda que tivesse uma engrenagem complicada, a proposta ganhou um pacto social. Já quando Lula se candidatou em 2002, uma de suas medidas foi lançar uma carta aos brasileiros destacando que não traria danos à economia, o que também garantiu a governança naquele período. “A conciliação está ao lado de quase todos os regimes econômicos que deram certo. A economia é uma ciência social”, afirma Pessoti. “Faz com que, de alguma forma, isso passe um clima positivo para aprovação das medidas”. O clima de divisão política, para o economista, vai continuar acontecendo. Apesar das brigas e desavenças, ele acredita que, com a retomada das atividades econômicas, a possibilidade de crescimento, geração de empregos e redução de processos inflacionários, a situação interpessoal pode mudar um pouco. 

“Essa crença de que as coisas estão melhorando leva os atores sociais a um clima de apaziguamento. Está todo mundo afoito, preocupado com o desemprego alto, com a cesta básica, com o nível de endividamento das famílias. Isso aflora acirramentos pela busca de um projeto de país”, completa.    *Nomes fictícios a pedido das fontes