Biografia destaca atuação social de Carlinhos Brown no Candeal

Ligação com o candomblé e educação rígida da mãe também são destaque no livro que está chegando às livrarias

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  • Roberto Midlej

Publicado em 29 de agosto de 2023 às 06:00

Carlinhos Brown completou 60 anos no ano passado
Carlinhos Brown completou 60 anos no ano passado Crédito: Leo Aversa/divulgação

O carioca Julius Wiedemann é designer e passou alguns anos trabalhando como editor da gigante Taschen, empresa alemã que produz muitos livros em edições caprichadíssimas, especialmente títulos relacionados à arte. Depois de viver 23 anos perambulando entre diversos países, como Japão, Estados Unidos e Alemanha, retornou ao Brasil.

Foi vivendo fora do país que - diz o próprio Julius - se deu conta do que é ser brasileiro. E em seu retorno achou que era vez de fazer algo pela cultura nacional. Numa ocasião, estava a serviço de uma empresa e foi fazer a gravação de um vídeo com Carlinhos Brown em Salvador. Impressionado com as habilidades e a capacidade de liderança do músico, saiu desses encontros convencido que aquele artista, então prestes a completar 60 anos, merecia um registro biográfico.

"Em qualquer lugar do mundo, um artista com a relevência dele já teria pelo menos quatro ou cinco biografias", diz, com certa indignação o designer. E foi aí que decidiu ele mesmo escrever o livro. Embora já tenha editado centenas de publicações, Julius nunca havia atuado como autor, exceto em um livro de poesias, Redenção. Mas, para ele próprio, sua estreia como escritor profissional começa agora, com o lançamento de Meia-Lua Inteira: A Constelação Mística de Carlinhos Brown, que ele está lançando nesta semana.

"Eu não queria um livro que fosse sobre a vida dele, com fofocas. Tenho interesse particular pela contribuição que pessoas como Brown dão para o Brasil. Morei 23 anos fora para entender o que é ser brasileiro", afirma o escritor. E, como uma das maiores contribuições de Brown é o seu trabalho social, com a criação de instituições como a Pracatum, esse é um dos assuntos de maior destaque no livro.

A Associação Pracatum Ação Social (APAS) foi criada em 1994, quando Brown já era um instrumentista e compositor conhecido, mas ainda muito longe de ser uma estrela pop, como hoje. O objetivo da Pracatum era, como está no livro, "desenvolver o bairro [Candeal] por meio da música e mobilizar os governos para melhorar a infraestrutura e as condições para quem transitasse por lá".

O autor, Julius Wiedemann
O autor, Julius Wiedemann Crédito: William Baglione/divulgação

"O trabalho social é um dos 'highlights' do livro, que nem tanta gente conhece e é importante para o Brasil. Ele [Brown] é diferente de muita gente que ganhou muito dinheiro e só depois fez um trabalho social. Ele começou cedo, dando aulas a alguns músicos e é dali que nasce a Timbalada", observa Julius, sem conseguir disfarçar, na voz, o entusiasmo pelo trabalho social do músico.

Embora muito preocupado com educação, Brown estudou até a antiga terceira série do primário, que hoje as crianças concluem entre os nove e os 10 anos de idade. E, apesar de não ter se adaptado ao ambiente escolar, diz que se arrepende muito de não ter concluído e, por isso mesmo, investe tanto em educação.

"Eu queria algo mais rápido que a escola, para poder ajudar meus pais a saírem da pobreza. E queria encontrar diversão, mas não achava isso na escola. A escola não era a minha mesmo", reconhece o músico. Mas se preocupa em fazer um alerta: "Não é bom não estudar!".

Brown e Julius asseguram que não há assunto proibido no livro. Embora tenha se preocupado inicialmente com a exposição que sua mãe sofreria, Brown não deixou de fora da biografia as surras que levava de Dona Madalena, quando se comportava mal. "Não escapei das surras dela nem de meu pai. Mas ele às vezes até batia na parede, para enganar minha mãe, fingindo que batia em mim", diverte-se Brown.

"A surra está ligada a uma educação escravocrata. Não escapei de ajoelhar no milho nem da palmatória. Mas naquele momento, todo mundo achava que educar era aquilo", diz o músico, sem revelar nenhum tipo de ressentimento em relação a Dona Madá. "Minha mãe queria minha ajuda, mas eu queria diversão, não queria trabalhar. Mas tive que trabalhar porque ela teve outros nove filhos e precisei ajudar".

Também estão no livro questões polêmicas como o dia em que Brown ficou completamente nu num desfile de Carnaval, em cima do trio. E também uma vez que ele foi detido, depois de ver um policial dar voz de prisão injustamente a um garoto que trabalhava em seu Camarote Andante. "Você vai me levar preso com ele", disse o artista ao policial, em tom de proteção ao rapaz.

Brown parece entusiasmado com a ideia do livro, que, embora não seja uma publicação "oficial", acaba integrando as comemorações de seus 60 anos, completados no ano passado. 

"Acho que uma pessoa popular gera interesse sobre como chegou ali e encontrei em Julius uma segurança de que o livro não soaria como heroísmo, mas que servisse como motor educacional para as pessoas"

Carlinhos Brown 
Músico

SERVIÇO

Livro: Meia-Lua Inteira: A Constelação Mística de Carlinhos Brown

Autor: Julius Wiedemann

Editora: Record

Preço: R$ 60 | 308 págs.

TRECHO

Como muitos sabem, o nome Carlinhos Brown deriva, principalmente, de James Brown, mas o significado vai muito além da imitação que ele fazia na adolescência do cantor americano. Nessa época, o Black Power e a soul music haviam estourado nos Estados Unidos, e as periferias afro começavam a questionar a opressão, os costumes e principalmente a subordinação. A Motown, lendário estúdio americano, havia começado a operar com esse nome em 1960, liderada por Berry Gordy, que para os Jackson 5 o hit “I Want It Back” e lançaria nomes como The Supremes, escreveria Marvin Gaye, The Temptations e Stevie Wonder, entre muitos outros. Nesse momento, a música passou talvez a ser o maior canal da luta racial, porque vinha carregada de moda, de costumes novos, de estilo próprio, de mensagens e de história. Mas também porque agradava a classe média branca intelectualizada que queria fazer parte da luta antirracista. O movimento se espalhou por Salvador, e cada nova peça que se somava em força e estilo. Dos blocos aos bailes, o racismo foi sempre um incorporava ingrediente de movimentos revolucionários, e, na Bahia, com a adesão do candomblé, criou-se algo único.