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Estadão
Publicado em 20 de setembro de 2024 às 07:14
Woody Allen é um dos cineastas mais prolíferos das últimas décadas. Golpe de Sorte em Paris, com lançamento nos cinemas brasileiros nesta semana, é seu 50º filme e o primeiro deles a ser gravado integralmente em francês.>
Desde que sofreu acusações de abuso sexual de sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow, o diretor foi "cancelado" em Hollywood, mesmo sem nunca ter sido indiciado, e teve dificuldades para encontrar financiamento nos EUA.>
Dessa forma, voltou a fazer filmes na Europa, continente que fora pano de fundo da boa trilogia inglesa - Match Point (2005), Scoop (2006) e O Sonho de Cassandra (2007) -; do mediano Para Roma com Amor (2012); dos premiados Vicky Cristina Barcelona (2008) e Meia-Noite em Paris (2011); e do mais recente O Festival do Amor (2020).>
O novo longa, ao contrário de Meia-Noite em Paris, não se interessa em romantizar o charme da capital francesa. O foco está, sim, na história atraente, encarnada pelo ótimo elenco local, que poderia facilmente ter sido rodada em Nova York, cidade "musa" do maior cronista vivo da metrópole americana.>
O enredo gira em torno de um triângulo amoroso. Fanny (Lou de Laâge) trabalha numa requintada galeria de arte e vive em um suntuoso apartamento com seu marido Jean (Melvil Poupaud). Mas ela começa a questionar o casamento aparentemente perfeito quando reencontra nas ruas parisienses o ex-colega de escola Alain (Niels Schneider), escritor que revela sempre ter tido uma quedinha pela moça.>
O esbarro ocasional com o rapaz é apenas o pontapé da sucessão de coincidências que virão a seguir. Essa ode ao acaso, inclusive, permeia toda a obra de Woody Allen, ateu confesso, cínico e neurótico. Para ele, a sorte está acima do talento e quem orquestra os acontecimentos da vida não é nenhum tipo de Deus, mas sim a aleatoriedade.>
O tema já fora pincelado em Crimes e Pecados (1989) e explorado magistralmente no já citado Match Point, duas referências claras para Golpe de Sorte, ainda que este seja bem mais leve que os anteriores. Leveza que permeia a direção de Allen e a fotografia de Gordon Willis, majoritariamente, mas que esvanece no ato final com reviravoltas dignas das tragédias do cinema francês.>
Jean, milionário coach de investimentos de passado nebuloso, revela seu lado ciumento. Ele gosta de exibir a "esposa-troféu" e faz de tudo para preservar o relacionamento, enquanto Fanny - cuja beleza e os olhos expressivos lembram a brasileira Maria Bopp - se divide entre os dois amores e ouve os conselhos da mãe (Valérie Lemercier).>
Nenhum cineasta explorou a complexidade dos relacionamentos amorosos como Woody Allen. Aqui, tópicos como fidelidade, ciúmes e o casamento moderno voltam a ser investigados. Não com a destreza de clássicos como Annie Hall (1977), Manhattan (1979) ou Hannah e Suas Irmãs (1986), mas com o mesmo olhar sábio por trás das lentes obsessivas do autor.>
No fim das contas, Golpe de Sorte em Paris é uma saborosa comédia romântica, com toque amargo, que diverte e surpreende. Dá para afirmar, com segurança, que se trata do melhor trabalho do diretor desde Blue Jasmine (2013).>
E, ao que tudo indica, será o último filme do mestre de 88 anos, que disse em entrevista ao Estadão estar "cansado" de correr atrás de financiamento para seus projetos. Uma pena, pois o mundo precisa de Woody Allen.>