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Gil Vicente Tavares
Publicado em 20 de setembro de 2023 às 05:00
Rivelino conta que Pelé, ao ganhar a Copa de 70, entrou no vestiário gritando “eu não tô morto, não! Eu não tô morto, não!”. >
O rei do futebol, já aclamado, entupido de troféus, precisava ainda provar que era o rei. E vai seguir sendo discutido seu posto de melhor do mundo, sendo que ele tornou-se inigualável porque fez tudo e ganhou tudo antes de todos. Inigualável. Até porque os tempos são outros, e tudo é mais amplo, diverso, e até disperso; e é bem mais fácil caminhar por uma estrada que já foi pavimentada. Pelé precisou parar, mesmo rei. Vida de jogador de futebol é curta, mesmo para os que jogam até perto dos 40 anos.>
Vida de professor e de ator, não. Você, tendo saúde, pode dar aula e pode atuar até próximo de seu último suspiro. A maioria, no entanto, desiste bem antes.>
Harildo Déda já não tinha tanta saúde assim, mas pouco importava. Continuou saindo de seguidas internações direto para a sala de aula. Poucos dias atrás, ainda falava em voltar à cena, seguia cheios de planos. Era movido a teatro e pelo amor ao seu ofício de mestre.>
Curioso era perceber que um homem que foi a referência como mestre parecia uma criança ao falar dos seus. A reverência a Alberto D’Aversa, João Augusto, e até mesmo Ewald Hackler, rapidamente faziam Harildo parecer um eterno aprendiz.>
Harildo foi do Centro Popular de Cultura. Aluno-ator de destaque da Escola de Teatro da UFBA. Tudo isso na década de 60. Em 70, foi pro Vila fazer parte do Teatro Livre da Bahia, sob direção de João Augusto, como um dos principais atores do grupo. Viajou a Nancy fazendo cordel, seguiu ganhando prêmios, e acabou ganhando uma bolsa para fazer mestrado prático em Iowa, nos EUA.>
Depois de seguidos semestres exercitando o ofício de ator atuando em clássicos do teatro mundial, voltou a Salvador e estreou como diretor, fundando, junto aos seus pares, a Companhia de Teatro da Ufba. Ainda mais experiente, na década de 80, montou a nova dramaturgia descoberta nos EUA, atuou em clássicos sob a direção de Hackler, Deolindo Checcucci e tantos outros colegas, e seguiu se especializando cada vez mais nas técnicas de interpretação com seus estudantes.>
Na década de 90, uma juventude invadiu a Escola de Teatro, na esteira dos sucessos recentes da cidade, e Harildo abraçou a meninada, conquistando mais uma geração que despontou inclusive nacionalmente. O mestre seguiu atuando em filmes, seriados, novelas, mas firme e forte em seu ofício como ator e diretor da Cia de Teatro da UFBA, e notadamente como mestre dos alunos de interpretação.>
Os anos 2000 chegaram e Harildo não parou. Mesmo com reforma do Teatro Martim Gonçalves, mesmo com aposentadoria, Harildo não parou sequer um instante de atuar e de jogar no mundo cada vez mais e mais atrizes e atores. Geração atrás de geração, ele seguiu apostando e acreditando nos que estavam chegando, virando depois colega de profissão, e, passados os 80 anos de idade, continuava atuando e ministrando seus cursos.>
Foi fácil? Não foi. Vários “divisores de águas”, várias gestões públicas, vários preconceitos e disputas mesquinhas faziam Harildo precisar dizer, de tempos em tempos, “eu não tô morto, não! Eu não tô morto, não!”. Suas queixas eram mais que legítimas, e, fosse num lugar que realmente respeitasse nosso ofício, era para ele ter tido muito mais estrutura, visibilidade e notoriedade do que teve.>
Foram mais de 60 anos ininterruptos dedicados ao teatro. Fazendo e ensinando a fazer. A Bahia teve, tem e terá grandes nomes das artes cênicas. Sabemos da importância fundamental desde Martim Gonçalves até aquela pessoa jovem, recém chegada na Escola de Teatro, que seguirá perpetuando nosso ofício.>
Mas ninguém, por tanto tempo, com tanta força, influência, referência, trabalho, luta, dedicação, talento e conhecimento, construiu e nem construirá uma história no teatro baiano como Harildo. Inigualável. Até porque os tempos são outros, e tudo é mais amplo, diverso, e até disperso; e é bem mais fácil caminhar por uma estrada que já foi pavimentada.>
Nosso Pelé partiu. Sem dúvida, para mim, Harildo Déda foi o grande nome da história do teatro baiano. Nossa presbiopia talvez possa estranhar o que estou escrevendo, aqui. Eu mesmo relutei. Mas basta revisitar nossa história para perceber a dimensão deste senhor pleno do seu ofício, pai e mestre de tantos como eu.>
Gil Vicente Tavares é artista e professor >