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Gabriela Cruz
Publicado em 26 de outubro de 2025 às 10:50
Às vezes, achamos que criar uma rotina e planejar tudo — das refeições ao horário de dormir — é o que nos protege do caos do mundo. Eu já tentei viver assim, mas nunca consegui. Sempre acabo vivendo um dia depois do outro, com uma dose inevitável de bagunça. E com o tempo, percebi que se permitir não fazer tudo igual é o que traz surpresas boas, ensina a lidar com as ruins e, principalmente, faz a gente ter prazer no não planejado. >
De tudo que eu vejo
Outro dia li uma entrevista de Fernanda Montenegro na Folha de S.Paulo em que ela dizia que sempre teve medo de perder tudo, por causa da instabilidade da profissão de atriz. E pensei o quanto esse sentimento não é só dela. Mesmo quem não vive da arte sabe o que é se segurar demais, deixar de arriscar por medo de desorganizar o que construiu. A gente aprende a se proteger tanto — da instabilidade, do olhar do outro, das próprias dúvidas — que começa a repetir os mesmos caminhos para não sair do lugar seguro. E aí entra a tal da síndrome do impostor, essa visitante silenciosa que insiste em aparecer sempre que a gente ousa mudar. Ela chega devagar, como uma gripe que nunca se cura de vez, e sussurra que talvez você não mereça estar onde está. Combater isso é um exercício diário. Às vezes, basta lembrar que até quem admiramos sente o mesmo medo — e ainda assim segue em frente.>
Assisti a um vídeo do especialista em pesquisa de tendências Jorge Grimberg sobre algo que nunca tinha me ocorrido: o ghosting financeiro. É quando alguém começa a desaparecer — deixa de ir a compromissos, evita amigos, não responde mensagens — simplesmente porque está sem dinheiro. E, por vergonha, não sabe como dizer. A pessoa prefere sumir do que admitir que o dinheiro está curto, que o Uber ficou caro, ou que não dá para acompanhar o ritmo dos outros. Parece banal, mas é um retrato muito real de um tempo em que quase todo mundo quer performar prosperidade nas redes sociais. Dizer “não posso ir porque estou sem dinheiro” se tornou quase um tabu. E o mais curioso é que essa negação não é nova — ela aparece até em ficção. No k-drama Nosso Eterno Verão, a protagonista faz o mesmo: se afasta de quem ama para esconder a própria vulnerabilidade financeira. É triste pensar que, às vezes, situações como esta nos tornam emocionalmente invisíveis.>
Tem um dado que ajuda a entender por que o ghosting financeiro virou algo tão comum. Segundo uma pesquisa do G4 Educação, 43% da geração Z já comprou algo só porque estava em alta na internet — e 64% afirmam ser mais fiéis aos produtos do que às marcas. Ou seja, a lealdade à tendência substituiu a fidelidade tradicional. O que importa não é a história por trás do que se consome, mas o hype do momento. É o Labubu, o copo Stanley, o objeto que viralizou e virou desejo coletivo. E isso cria uma corrida silenciosa: todo mundo tentando acompanhar o ritmo de uma internet que nunca para, mesmo que o bolso peça trégua. No fim das contas, talvez o consumo também tenha virado uma forma de ghosting — um jeito de fugir de si mesmo, de não precisar encarar o que a gente realmente quer ou pode.>
Uma publicação que vale conhecer é Letras e Filetes: Memória Afetiva e Latinidades. A cartilha, desenvolvida pelo Estúdio Arado — o mesmo responsável pela identidade visual da exposição homônima —, foi publicada pelo Sesc São Paulo e idealizada pelo artista e curador Filipe Grimaldi em parceria com Thiago Neves. O material celebra a riqueza das letras populares e da ornamentação fileteada, revelando um ofício cheio de cor, história e afeto. Está disponível gratuitamente na unidade do Sesc Ipiranga, em São Paulo, e acessado por aqui. É um desses achados que lembram que o impresso ainda tem muito o que ensinar — e que desenhar ou escrever à mão continua sendo uma forma bonita de desacelerar o olhar.>
Outra dica é o Caderno 1, de Iansã Negrão e Lia Cunha, disponível na RV Cultura e Arte. São 54 páginas impressas em risografia, em uma edição única de apenas 45 cópias numeradas. O livro inaugura o Gabinete de Investigação do Desenho e propõe uma experiência que vai muito além da representação. Por meio de rituais, aquecimentos e desmandos, os leitores são convidados a desenhar “errado”, rompendo regras e técnicas convencionais. A ideia é abrir espaço para novas percepções, ouvir o corpo e dialogar com materiais e superfícies de um jeito mais livre. Um exercício de desapego, imperfeição e descoberta — exatamente o tipo de pensamento aleatório que faz a gente enxergar o mundo com outros olhos. O livro custa R$ 80 e pode ser adquirido pelo site rvculturaearte.com/publicacoes.>
Outra dica para quem quer desacelerar é fazer uma assinatura de cartas. A artista australiana Alessia criou o Cloudy Club, um clube de correspondência mensal que convida a redescobrir o encanto de receber algo pelo correio. Por 12 dólares australianos (com frete incluso para o Brasil), os assinantes recebem, no fim de cada mês, uma carta escrita à mão, um adesivo exclusivo, um postal, lembretes de diário e outros mimos pensados para inspirar conexão, amor próprio e criatividade. É uma forma simples e bonita de resgatar o tempo das palavras lentas.>
Aqui no Brasil, existe também o Cartas do Mundo, um clube de assinatura que envia, todo mês, uma carta de uma cidade diferente. Eu já recebi as de Seul e do Rio de Janeiro — e a desse mês vem da Baviera, com o tema Descubra Munique. O envelope chega como um pequeno ritual: textura de papel, selos temáticos, ilustrações delicadas e o prazer de abrir algo feito com cuidado. A assinatura anual custa R$ 29,90 por mês e transforma o correio em uma ponte de histórias, lembranças e mundos possíveis.>
Entre tantas tentativas de organizar a vida — planilhas, agendas, marmitas, cronogramas —, o que mais tem me feito bem é o que escapa. Um pensamento aleatório, uma conversa fora de hora... A gente passa tanto tempo tentando prever o dia seguinte que esquece o prazer de se surpreender. E talvez seja isso que os pensamentos aleatórios ensinam: que o imprevisto também é uma forma de ordem, só que mais humana. Que há beleza em perder o controle e seguir curiosa, abrindo espaço para o erro, para o improviso e para a descoberta. No fim, é sempre nesse intervalo entre o planejado e o acaso que a vida resolve acontecer — de um jeito que nenhum cronograma explicaria.>