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Laura Fernades
Publicado em 20 de novembro de 2016 às 07:08
- Atualizado há 2 anos
“Ser ator negro no Brasil não é fácil, tem que lutar muito”. A fala do ator baiano Érico Brás, 37 anos, surge ao telefone com serenidade, apesar de retratar a gravidade de um problema que persiste. No ar em sua primeira novela da Globo, A Lei do Amor, o ator vibra com seu atual momento profissional, principalmente porque sua estreia se dá no horário nobre das 21h e com um personagem que está longe de ser mais um empregado.“Essa estreia é um presente, porque Jader é um personagem diferente. Ele é a representação de um homem brasileiro que estudou, se formou, e é um cara sério, um enfermeiro responsável”, destaca Érico que, em sua trajetória na tevê, acumula papéis em programas como Tapas & Beijos e Zorra Total. Este último, inclusive, concorre ao Emmy Awards de melhor comédia, em cerimônia que acontece nesta segunda (21), em Nova York.Há sete anos na Globo, Érico Brás participa de sua primeira novela, A Lei do Amor(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)Iniciado no teatro aos 8 anos, em Fazenda Coutos, e formado no Bando de Teatro Olodum - que lhe deu reconhecimento nacional como o taxista Reginaldo do filme Ó Pai Ó -, Érico garante que “ainda é o começo”. “O momento é de crescimento e nada está garantido. Quem não se reinventa, fica pra traz. Sou um eterno aprendiz”, acredita o artista, que também atua na série Crime Time: Hora do Perigo, produção francesa gravada no Brasil e exibida no Studio+, aplicativo da Vivo, na qual vive um policial militar.Na Globo há sete anos, Érico lembra que “no país que não tem políticas para incentivar a arte como meio de humanização, socialização e educação, ser artista cai na história do ‘ser vagabundo’”. Assim, para ele, “ser artista no Brasil é difícil e ser artista negro é pior ainda”. “O ator negro, além de ter que superar o estereótipo do artista vagabundo, tem que superar o estereótipo do artista negro. Os contáveis – eu, Lázaro Ramos, Luís Miranda... – são privilegiados e sabem da responsabilidade de estar ali”, completa.Essa responsabilidade passa por não aceitar qualquer papel, explica Érico, que defende a importância de construir novos caminhos com diálogos mais materializados, do ponto de vista da representatividade. “Se hoje estou fazendo uma novela das nove que não é simplesmente um empregado, é porque tive pessoas no passado que fizeram isso e porque o Bando me ensinou a ser ator-cidadão”, destaca.PersistênciaEm A Lei do Amor, novela de Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari, com direção artística de Denise Saraceni, Érico Brás interpreta Jader Azevedo, um enfermeiro diplomado que é convidado a entrar na casa de Mag (Vera Holtz) para cuidar do poderoso empresário Fausto (Tarcísio Meira). “O trabalho de Jader é de extrema importância. Para entrar numa casa daquela tem que ser muito competente, já que recuperar um homem tetraplégico é uma missão”, ressalta Érico.Ao lado de outros personagens de A Lei do Amor, Érico Brás vive o enfermeiro Jader(Foto: Estevam Avellar/TV Globo)O enfermeiro, segundo ele, tem “a persistência do brasileiro”, já que mora na pensão de Zuza (Ana Rosa) e trabalha duro para conseguir seu sustento. Ao mesmo tempo, a persistência envolve o campo amoroso, já que o rapaz vive um eterno “pega, estica e puxa” com a cartomante Mileide (Heloisa Périssé), ex-namorada que ele tenta reconquistar a todo custo.Enquanto mostra a recusa ainda apaixonada de Mileide, a trama também aponta um possível envolvimento do enfermeiro com a exuberante Luciane Leitão (Grazi Massafera), que tem jogado todo o charme pra cima do dedicado enfermeiro que cuida do seu sogro (Tarcísio Meira). “Eles estão muito juntos, pra lá e pra cá... Mas não me pergunte o que vai acontecer, porque também não sei”, se antecipa Érico, rindo ao telefone.Arte políticaApesar de estar contente com as conquistas na teledramaturgia, o ator baiano está atento para o fato de que muita coisa ainda precisa ser feita para combater o racismo. Em março deste ano, por exemplo, Érico e sua mulher, a atriz e empresária Kenia Maria, 40 anos, foram retirados pela Polícia Federal de um voo da Avianca após o comandante se mostrar irritado com o local onde o casal estaria guardando sua bagagem.Segundo Érico, que prestou queixa na Agência Nacional de Aviação (Anac) assim que desceu do avião, o comandante foi extremamente grosseiro. “Tem uma coisa que aconteceu ali que é comum no comportamento na sociedade brasileira, que é o tratamento dispensado a pessoas como nós. É normal, para alguns, tratar negras e negros dessa forma ríspida e quando nós reagimos a isso, somos tidos como subversivos, como ameaça para as outras pessoas ao redor”, denuncia o ator.Ao apontar que muitas vezes a sociedade exclui o outro sem sequer ouvir seu lado ou entender seus motivos, Érico reforça que há, sim, “um conceito preestabelecido”. “Mas confesso que não me assusta”, contra-argumenta. “Acredito numa possível transformação disso. Faço arte por conta disso. Quando vou para o palco, para o cinema, para a televisão, estou sendo político. Minha política é feita na minha arte. Acredito que traga resultado”, finaliza, otimista.A atriz Kenia Maria idealizou a websérie Tá Bom Pra Você?(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)Websérie de Érico Brás e Kenia Maria vira peça em 2017Ao avistar dois homens negros, uma mulher guarda o celular na bolsa e começa a correr. Alcançada pelos homens, que eram policiais à paisana, a mulher ouve de um deles: “A senhora está presa sob a Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que diz: ‘serão punidos na forma da lei todos os crimes de preconceito e de racismo, religião, cor e etnia”.>
A cena faz parte da websérie Tá Bom Pra Você?, que leva o debate racial para o YouTube, além de recriar peças publicitárias tendo os negros como protagonistas. Idealizada e dirigida pela atriz carioca Kenia Maria, a série vai virar peça em 2017, com os dois no palco.>
“Eu e Kenia estamos escrevendo juntos. É uma espécie de stand-up que a gente chama de Double Black, onde vamos abordar esses assuntos de maneira escancarada. Falar de negro com profundidade, criticar, dar risada, só preto pode. Mas é uma peça pra todo mundo!”, garante Érico, que é sócio colaborador do canal.>
Criada sem televisão até 20 anos, por uma decisão política da mãe, Kenia destaca que o Brasil tem apenas 4% de negros na publicidade, apesar de ser um país onde mais da metade da população é negra. “A gente precisa parar e pensar como estamos educando nossa sociedade”, ressalta a atriz.>
“Somos obrigados a falar de racismo, esse monstro horroroso que todo mês de novembro voltamos a debater. Quero deixar bem claro que a gente não gosta de falar disso, porque o racismo é cansativo. Queria falar de poesia, mas ainda não é possível”, critica Kenia, ao citar que 80% dos jovens de 15 a 29 anos que morrem no Brasil são negros.>
Kenia denuncia, ainda, a realidade da mulher negra, que “ganha menos no mercado de trabalho, casa menos, morre na mão dos homens e é assediada”. “Que loucura é essa que a gente está vivendo?”, diz, indignada.>
Sem escolha, resta a ela colocar o tema em pauta nas diferentes mídias. “A gente tem que deixar o romantismo e partir para o debate real, mesmo. O mês de novembro é importantíssimo, mas isso deveria ser debatido diariamente, de forma que a gente conseguisse desconstruir o racismo institucional, que é o mais perverso”, finaliza.>