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Da Redação
Publicado em 9 de fevereiro de 2014 às 17:54
- Atualizado há 2 anos
"Eu queria um beijo tradicional, mas de amor", disse autor de novela Foi na noite de Natal, acompanhado de sua família, "bem classe média", que Walcyr Carrasco percebeu de vez a existência de uma torcida para que Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) ficassem juntos em Amor à Vida. Meses antes, o autor já havia decidido quebrar um tabu com o folhetim que marcou a sua estreia no horário nobre da Globo: levar ao ar um beijo de amor entre dois homens no último capítulo. Exibido no dia 31, o desfecho da trama mostrou o tal carinho entre o sushiman e o vilão regenerado, personagens alçados ao posto de casal principal da novela.O beijo que entrou para a história das telenovelas brasileiras foi resultado de um romance muito bem pensado pelo autor para angariar a aceitação do público. Félix e Niko estão entre os destaques de um novelão de 221 capítulos marcado por muitas reviravoltas e personagens que mudaram radicalmente de comportamento. Ao longo dos últimos meses, Walcyr, de 62 anos, vivenciou a rotina de escrever - sempre tarde da noite, como prefere - o programa mais visto e comentado da TV.Jornalista, autor de novelas e peças de teatro, com 60 livros lançados, ele chegou a dormir em cima do teclado ao escrever histórias de Amor à Vida "praticamente dopado" por remédios para aliviar a dor que sentiu após a extração e o implante de cinco dentes, em meados do ano passado. Dizendo-se de luto pelo fim da novela, Walcyr fazia a primeira refeição do dia às 15h30 quando recebeu, na semana passada, a Revista da TV em seu apartamento carioca - ele vive entre Rio e São Paulo.O autor detesta acordar cedo e mostra sua face "gente como a gente" ao comentar o alto custo de vida das duas cidades onde vive. Ele ainda não se desligou do recente trabalho. Domingo passado, jantou com Mateus Solano e sua mulher, a atriz Paula Braun, também do elenco da novela, num restaurante do Leblon. O ator era um dos poucos que já sabiam sobre o beijo, planejado sob total sigilo.>
Nesta entrevista, parte da série com autores de novelas iniciada pela Revista da TV em janeiro, o criador de tramas como O Cravo e a Rosa (2000), Caras & Bocas (2009), em reprise atualmente nas tardes da Globo, e da mais recente versão de Gabriela (2012), conta detalhes sobre a aprovação e o planejamento da cena do beijo. Ele esclarece boatos, como a fama de ser vingativo com atores que não seguem à risca o texto que escreve. E comenta ainda os sucessos e os percalços da carreira como autor de novelas, iniciada com a novela Cortina de Vidro, exibida pelo SBT em 1989.Criação: Walcyr diz que costuma gesticular e falar sozinho diante da tela do computador, numa espécie de conversa com os personagensPor que deixou o beijo para o final da novela?Sempre quis deixar para o último capítulo porque sabia que seria uma bomba, algo que iria surpreender a sociedade.Como surgiu a iniciativa de exibir a cena?A imaginação de todo mundo é maior do que a realidade. Não tive nenhum problema em relação ao beijo. Eu tinha uma história e, há quatro meses, fui ao diretor-geral de entretenimento (Manoel Martins) e falei: Acho que está na hora desse beijo acontecer porque a história está pedindo”. Naquele momento, Félix e Niko ainda não tinha acontecido com força. Mas a questão da família estava presente entre Niko e Eron. O beijo poderia ter sido entre o Thiago e o Marcello Antony. Eu propus um beijo de despedida entre o casal, algo do dia a dia, de pessoas que estão juntas e dão um beijo quando um deles vai trabalhar.Já imaginava que o beijo seria aprovado quando foi conversar com a direção da emissora?É importante dizer que essa não é uma decisão que se toma sozinho. Isso afeta toda a estrutura da Globo. Mas a emissora vive um processo de atualização neste momento de sua história e está buscando uma sintonia fina com a sociedade. Dois dias depois, o Manoel me respondeu com um OK, caso a cena fosse feita dentro do contexto que falei.A novela abordou diferentes formações familiares. Por que escolheu mostrar o casal gay nesse contexto?Brinco muito que o movimento LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais e travestis) busca cada vez mais a família, o casamento. Todos os valores que, de certa forma, compõem a vida da sociedade. Por isso propus o beijo dentro de um contexto familiar.A emissora fez algum tipo de pedido?A postura da emissora era de manter sigilo e respeito. E a minha também.Essa história de que você recebeu carta branca da emissora para decidir se teria ou não beijo é verdade?Hoje em dia há uma grande parcela da imprensa extremamente fantasiosa e reacionária. Principalmente a feita na internet, que cria um movimento de especulação em cima das novelas. E que não é do bem. Essa história de carta branca nunca existiu. Foi uma invenção. O que houve é fruto de uma decisão que eu como autor levei para a empresa. Mas se falasse com a imprensa naquele momento sobre isso, a especulação teria sido ainda mais absurda.Como conseguiram manter o sigilo?Quase ninguém sabia que haveria o beijo. Combinei pessoalmente com o Mauro Mendonça Filho (diretor-geral): “Quando aparecer tal sinal no texto, terá o beijo”. Quem quer que tenha tido acesso ao capítulo não notou. O código foi uma linha de asteriscos.Quantas versões do beijo foram gravadas?Gravamos várias versões: uma conservadora, uma moderada e uma agressiva. Foi assim que me expressei para explicar o que queria. Numa linguagem de investimento financeiro. Na vida bancária, sempre opto pelo moderado e na novela foi assim também. Achava que não poderia ser a versão conservadora, que era pouco mais do que um selinho, nem a agressiva. Por um simples fato. Eles estavam se despedindo, não indo para a cama. Esse outro beijo (de língua) é dado quando você está indo para a cama. Não era a situação. Foi gravado, sim, até para a gente ter opções. Mas sabia que não seria esse. Nem sei dizer quantas vezes eles gravaram porque fizeram em vários ângulos. Tinha: opção A, com meio corpo, A só com rosto, e por aí vai...Quis ver a cena antes? Claro. Até para discutir qual seria o beijo que representaria a situação que a gente queria. A decisão foi unânime. Eu queria um beijo tradicional, mas de amor. Era essencial. Era um momento do casal que não pressupunha um beijo mais intenso. Acho que o amor promove aceitação e a novela falava disso. Mas a gente também precisava da aceitação do público.Quando foi a escolha? No dia do último capítulo. Tenho horror de acordar cedo, mas tinha que ver o quanto antes porque a cena precisava ser editada. Acordei às 8h, saí de casa um caco. Mauro, que dirigiu a cena, e o Wolf (Maya, diretor de núcleo) estavam presentes. Vimos juntos e levamos nossa opção à direção. É um assunto sério. Quando você faz uma coisa pioneira tudo tem que estar de acordo com a emissora. O Manoel Martins é o diretor de entretenimento e tinha que participar. Ele fechou com o que a gente tinha fechado.Existia entre vocês a sensação de que fariam História?Eu tinha o sentimento de que ia fazer História. Sei que daqui a 50 anos em qualquer livro sobre a TV brasileira, vai ter esse beijo. Tenho uma relação mais próxima com o Mateus, gosto muito dele como pessoa também. Quando falei para ele, em segredo, disse que entraria para a história da TV.Quando conversou com o Mateus já havia decidido que Niko ficaria com Félix?Sim, mas já tem um tempinho que contei a ele. A história estava em branco quando comecei a ver a questão do beijo, mas foi tomando outros rumos. Niko tinha se separado do Eron. Naquele instante o Félix tinha ficado pobre e começado a se redimir.Você construiu o romance de Félix e Niko para torná-los o casal principal da trama?A estrutura do romance deles é a de um namoro hetero de novela. Eles se conhecem, brigam sempre no final do papo. De repente, Eron faz uma fofoca para separar os dois. Niko, que cuida de duas criancinhas com todo amor, acredita que Félix está com outro, sofre. Tudo proporcionou um desfecho natural. As pessoas já viam o romance com tranquilidade.Quando percebeu que tinha acertado?Tive certeza absoluta de que estava no caminho certo na noite de Natal, em família. A gente faz um Natal bem classe média, com amigo secreto... E, de repente, na sala, a discussão das mulheres era Félix e Niko. A minha sobrinha Andrea disse: “Vocês têm noção de que há 4 ou 5 anos a gente não estaria discutindo isso?”. E eles não estavam falando da novela porque eu estava lá. Não conto nada da trama nem para a família.Como define os rumos da história?Sento e assisto à novela todas as noites, como se fosse o público. E desenvolvo um diálogo com os atores através do que vejo. Danielle Winits, por exemplo, foi hábil. Viu por onde iria brilhar e brilhou. Acho que o beijo aconteceu porque tínhamos dois astros nos papéis. Tanto, que ao procurar a mulher para fazer a Amarilys, pensei na Danielle. Ela faria bem que chamo de “bruxa de bicha”, ela tem essa cara.Costuma levar em consideração o que é dito na web?Eu não me acostumei com isso. O autor não pode dar ouvido ao que falam. A internet ainda não expressa a opinião da totalidade da população brasileira. Mas dá para acompanhar a repercussão de uma cena. Durante a novela, a Amarilys estourava na internet quando aparecia. Mesmo que sejam tuítes contrários, é sinal de que a personagem pegou.E as cobranças de que muitas das tramas de Amor à Vida não eram verossímeis?No Twitter, as pessoas escrevem: “Essa novela só tem maldade, e as coisas não dão certo”. Como se a TV fosse a culpada. E a literatura? Do que se trata? Da alma humana, das contradições, dos desencontros... A novela tem vilãs e histórias de amor que não dão certo, como na literatura. Só o Pequeno Príncipe é bonzinho o tempo todo.Muitos acusaram o texto da novela de ser didático em alguns momentos...A novela se passa num hospital, e achei que tinha que ter mensagens sociais, como a doação de órgãos. Mas não se pode confundir a novela com uma aula ou um documentário.Por que abordar temas variados, como alcoolismo e o vírus HIV, sem aprofundar essas discussões?Não dava para explorar todos os temas. Eu quis tocar neles, falar que existem e, talvez, causar um ponto de curiosidade.Amor à Vida foi esticada e terminou com 221 capítulos. Foi sofrido?Não tenho problema com isso. Adoro escrever, seja o que for. Seja livro, um texto para teatro... E adoro escrever novela. Caras & Bocas teve 232 capítulos. Morde & Assopra foi a única que não foi aumentada e teve 180. O projeto inicial de O Cravo e a Rosa era de 90 capítulos e acabou com 221. Lembro que tive que criar um hotel para ter um cenário para botar mais personagens.É verdade que não tolera ator que altera seu texto?Eu odeio (diz, com ênfase nesta palavra) ator que usa caco. É uma prova de que ele não é bom, que não consegue botar intenção naquilo que está escrito e precisa incluir usar muletas, falar do seu jeito. Se um ator diz o texto sempre do jeito dele, faz tudo sempre igual.O que faz com os atores que usam cacos?Eu deixo de me interessar pelo personagem. Houve um caso em que parei de escrever para o ator, que virou quase um figurante.Você matou a personagem da Marina Ruy Barbosa porque ela não cortou o cabelo?Neste caso, não tinha o que fazer. Foi o caso de uma atriz que subverteu a trama. A personagem da Marina morreu porque não tive alternativa. Ela tinha uma doença fatal. Para se curar, teria que mostrar as consequências físicas do tratamento. Já tinha dito que ela estava perdendo cabelo em cena.Voltaria a trabalhar com a Marina?A gente nunca deve dizer nunca. As pessoas mudam, se transformam. Com atores que apoiaram seus personagens em cacos não voltei a trabalhar.Quais os maiores problemas que enfrentou durante Amor à Vida?Tive um problema nos dentes durante a novela, sentia muita dor. Tomava remédio de duas em duas horas e cheguei a dormir em cima do teclado.O que pode adiantar da sua próxima novela?Será uma comédia de época para o horário das 18h. Da próxima vez, quero ter menos personagens para não ficar em dívida com ninguém. Eliane Giardini e José Wilker são grande atores e mereciam mais em Amor à Vida. Não quero mais ficar em dívida. Grande atores terão papéis para seu tamanho.>