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Roberto Midlej
Publicado em 2 de agosto de 2024 às 06:00
Durante um tempo, foi lugar-comum dizer que Jô Soares (1938-2022) gostava de falar mais que seus entrevistados. Ou que ele gostava de se exibir, mostrando seus conhecimentos e habilidades, às vezes ofuscando a presença dos convidados de seu programa. O próprio humorista sabia que modéstia e discrição não eram seu forte, desde criança. Em certa ocasião, confessou a Irene Ravache, numa conversa que foi ao ar na TV: “Eu era realmente uma pessoa in-su-por-tá-vel”, diz ele com muita ênfase no adjetivo. “Era aquele menino que fazia gracinhas, inconveniente com as visitas”. >
A declaração está na primeira cena da série documental Um Beijo do Gordo, que chegou ao Globoplay nesta semana. E a produção, em quatro episódios, mostra que Jô tinha lá seus motivos para não ser modesto. Afinal, além de humorista, ele era dramaturgo, diretor teatral, escritor, ator… e ainda se arriscava como músico e artista plástico. Sem falar no fato de ser poliglota - chegou a fazer entrevistas em cinco línguas, além do português. E tinha mais um motivo para ele se gabar: foram praticamente 60 anos de carreira na TV - de 1956 a 2016 - fazendo muito sucesso.>
Os episódios seguem a ordem cronológica e o primeiro capítulo mostra o início de Jô na televisão, desde A Família Trapo, na antiga Record, de São Paulo, nos anos 1960. Aí estão depoimentos de artistas e pessoas que trabalharam nos bastidores de seus programas, como Eliezer Motta (que ouvia o bordão ‘Cala a boca, Batista); Cláudia Raia; Marcelo Adnet e Hilton Marques (roteirista).>
“Jô conseguia trazer uma cleveza para um Brasil que estava em crise, saindo de um ditadura, de uma censura. Era um país que não se criticava e Viva o Gordo tinha altas doses de crítica”, observa Adnet, que, como outros jovens humoristas, deixa clara sua admiração por Jô. >
Em outro episódio, Tatá Werneck chora quando visita o cenário do Programa do Jô, que foi recriado para o documentário. Mais que admiração, esses comediantes da nova geração parecem ter uma reverência a Jô, ainda que façam um tipo de humor completamente diferente daquele que o Gordo fazia.>
Fábio Porchat é outro que não contém as lágrimas ao falar de Jô. Ele lembra de quando o apresentador lhe deu uma chance de fazer uma pequena participação no programa de entrevistas. Ainda estudante, aos 18 anos, Porchat estava na plateia e se ofereceu para fazer uma apresentação. Entusiasmado, Porchat voltou para casa e foi atrás de um curso de teatro. Largou a faculdade de administração, claro.>
Entrevistas>
O segundo episódio se concentra nos programas de entrevista que Jô teve. O desejo de ter um talk show provocou a saída dele da Globo para o SBT, já que a emissora de Roberto Marinho não queria lhe dar esse espaço e Silvio Santos topou. >
E Jô Soares Onze e Meia, por insistência do humorista, se tornou um sucesso imediato. Não tinha lá tanta audiência, afinal era num horário ingrato. Mas tinha a tal “audiência qualificada”, que valia muito para atrair prestígio. E, claro, anunciantes. E veja a ironia: anos depois, Porchat teve seu próprio talk show na Record, onde entrevistou... Jô Soares!>
O Jô Onze e Meia teve momentos impagáveis, resgatados na série, como o chilique que Caetano Veloso dá ao se referir a uma reportagem do The New York Times, que afirmava que ele e Gil “alardeavam sua bissexualidade” ao se apresentarem usando saia. Com o dedo em riste e a testa franzida, Caetano berra: “Não tenho medo do The New York Times! Não pedi nada a você, canalha!”, afirma, como se falasse com o jornslista autor da reportagem.>
Há ainda o tocante e sensível depoimento de Flávia Pedra Soares, diretora de arte que foi casada com Jô e raramente aparece em público para falar da relação. “Ela é o grande amor da minha vida”, dizia Jô anos após a separação. E, como ele não perdia a chance de uma piada, brincava com o fato de continuar amigo de Flávia após o divórcio: “O amor é difícil de separar. É uma separação que não deu certo”. >