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Esther Morais
Publicado em 29 de agosto de 2024 às 07:15
Em meio à notícia de que, a partir de 2025, qualquer mulher acima de 18 anos poderá se alistar, é hora de lembrar das trajetórias centenárias de quem precisou se passar por homem para servir ao Exército. Uma delas é o legado de Maria Quitéria. A baiana marcou a história ao ser pioneira no Exército Brasileiro, há mais de 200 anos. >
Para o professor de história na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Clóvis Ramaiana Oliveira, nos tempos de hoje, Quitéria provavelmente não se alistaria. “Não tenho a menor dúvida de que, se sentisse a pátria ameaçada, se alistaria, mas não é o caso”, analisa. Maria Quitéria lutou durante a independência da Bahia, em um contexto de insatisfação com o domínio de Portugal. >
Na época, era comum no Sertão que mulheres tivessem o manejo de armas, uma vez que havia muitos predadores nas regiões e bandos armados, explica Oliveira. As mulheres, portanto, aprendiam a atirar para proteger suas fazendas e filhos, enquanto os homens se preparavam para a guerra. >
Ao contrário do esperado para o século 19, Maria Quitéria chegou a completar 30 anos sem marido e filhos. Não há cravado o que a motivou a se alistar, mas, entre as possibilidades, considera-se a revolta com os portugueses ou a busca por uma vida diferente, visto que ela não se encaixava nos padrões de esposa e mãe. >
Como as mulheres não podiam se alistar, a baiana precisou se disfarçar de homem, em nome do soldado José Medeiros. “Ela passou na casa da irmã, que já era casada com o José Cordeiro de Medeiros, e eles a ajudaram a cortar o cabelo, e o cunhado emprestou o seu nome, como se fosse filha deles, e as roupas. Quando Maria chegou a cavalo em Cachoeira [no Recôncavo], já chegou travestida de homem”, narra a historiadora Marianna Farias, mestranda em História na Universidade Federal da Bahia (Ufba). >
A descoberta do sexo de Quitéria só aconteceu quando o pai dela, na busca pela filha fugitiva, a viu com os outros soldados e revelou o disfarce para os comandantes. “Ela fugiu porque ele não consentiria com a decisão”, explica Marianna Farias. A heroína, no entanto, era habilidosa e, por isso, recebeu permissão para seguir na guerra. Os registros apontam que Maria Quitéria participou ativamente no front em pelo menos três batalhas. >
Após as vitórias, ela foi convidada pelo Imperador Dom Pedro I para ir até a Corte no Rio de Janeiro, onde residiu por um tempo e recebeu diversas honrarias, a exemplo da Imperial Ordem do Cruzeiro. Depois, retornou para a Bahia. >
Maria Quitéria de Jesus nasceu na região da Serra da Agulha, localizada atualmente no limite de Feira de Santana. A guerreira nasceu em uma fazenda do pai, o que a encaixa em um padrão relativo de classe média. Segundo Marianna Farias, a família tinha, inclusive, “posse” de pessoas escravizadas. >
Ao retornar para casa, onde hoje é o distrito de Maria Quitéria, a heroína se casou com um lavrador e teve uma filha. Ela ainda tentou ter acesso à herança do pai, mas não conseguiu os bens. Maria Quitéria se mudou para Salvador e, na capital, morreu no anonimato.>
Os historiadores ainda ressaltam que ela foi uma mulher parda com traços indígenas. “O século 19 vai retratar Maria Quitéria totalmente branca. Tem desenho dela ruiva. E muito masculinizada É uma visão inglesa sobre Maria Quitéria”, avalia a historiadora.>
Já no século 20, porém, há uma mudança na forma de olhar a independência - tanto por parte do estado quanto dos brasileiros. Surge uma tendência de valorizar o nativo, os indígenas e o povo que participou dos confrontos. Ela começa a ser retratada como uma mulher de pele mais escurecida, mais feminina e com características menos europeias.>
A figura de Maria Quitéria se tornou tão forte que seu nome não é apenas um dos destaques na comemoração da Independência da Bahia, é também refúgio para alguns fieis. Na tradição católica, mesmo que a baiana não seja reconhecida oficialmente, ela tem seus devotos. A “Santa Quitéria”.>
Há uma história de que uma fiel procurou alguma igreja aberta nas ruas de Salvador para rezar, mas não achava. O desespero só parou quando ela viu uma imagem imponente, no bairro da Soledade. Ela se ajoelhou, rezou e acalmou seu coração. Só não sabia que ali não se tratava de uma santa católica, mas da heroína da Independência da Bahia.>
Nas religiões de matrizes africanas, Maria Quitéria também é imponente, mas encarnada na figura de uma pombagira poderosa. Quando desce no seu “cavalo”, que é uma forma de denominar a pessoa que invoca a entidade, a heroína de guerra tem sempre uma característica guerreira, geniosa e combatente.>