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Bruno Wendel
Publicado em 19 de agosto de 2024 às 05:00
Uma família pede socorro para se manter viva dentro de sua própria casa, em Camaçari, Região Metropolitana de Salvador (RMS). “Tenho medo da minha própria sombra”, desabafa a dona do imóvel, pressionada há cerca de dois anos para abandonar o local por um empresário, que alega ser proprietário da terra. Coincidência ou não, de lá para cá, a residência foi arrombada inúmeras vezes, teve a luz e a internet cortadas propositalmente, jagunços rondando no entorno – inclusive, um deles chegou a apontar uma arma. “Não sei como não ceifou a minha vida”, diz ela. A ameaça mais recente ocorreu no último dia 6, quando a mulher, os dois filhos e o companheiro foram sequestrados por encapuzados e passaram mais de quatro horas sob o poder deles. >
“Nem pensei em mim. Pensei só nos meus filhos (um de 13 e outro de 17 anos) e no meu marido. Os meninos sentados, virados para a parede, com a arma apontada para a cabeça e lá em cima, meu marido algemado, com o rosto coberto. Eu ficava subindo e descendo e eles me dizendo que se eu continuasse, iam me ‘quebrar no pau’”, contou ela, que concordou em falar com a reportagem na condição de anonimato. O medo é tamanho que ela e um dos filhos encontraram com a nossa equipe em uma região distante da casa deles, situada no Loteamento Antônio Felix Martins, no bairro Parque Real Serra Verde, cortado pela Estrada das Cascalheiras. >
A mulher conta que no dia, os criminosos chegaram em dois carros e arrombaram o imóvel por volta das 23h e disseram ser policiais. “Falaram que na casa tinha drogas, que receberam uma denúncia de que lá havia também armas, mas eu, meus filhos e meu marido somos cristãos”, disse. A família ficou por horas em poder dos criminosos, que faziam terror psicológico, cobrando as drogas e armas, ao mesmo tempo, em que destruíam tudo. Segundo ela, em um determinado momento, todos já estavam vendados com as próprias roupas e as mãos imobilizadas. Em seguida, foram retirados do local. “A gente foi andando, em fila. Puseram a gente em um dos carros, que era alto. Eles empurraram o meu marido. Eu ainda consegui subir de lado. Eles arremessaram meus filhos em cima de mim e disseram que iam nos levar à delegacia”, relata a vítima. >
No meio do trajeto, o carro parou. “Disseram que o delegado informou que pegaram as pessoas erradas e fizeram a gente descer, virar de costa, mas se a gente virasse, atirariam na gente”, conta a mulher. Antes de irem embora, os encapuzados deram um recado. “Disseram para a gente não voltar para casa, caso contrário iam terminar o serviço”, declara a vítima. >
Esta foi a terceira vez que criminosos pressionam para que a família abandone a casa. A primeira tentativa aconteceu em outubro do ano passado. “Chegaram no mesmo carro, desligaram a minha luz, internet, tocaram fogo ao redor do muro, de fora a fora, e ainda botaram sigla de facção, que não tenho nada a ver com isso”, relata. O segundo episódio ocorreu no mesmo mês. “Um homem apontou a arma para mim. Ele bateu na porta, como se fosse uma pessoa íntima. Fiquei paralisada, não sabia o que fazer, mas ele entrou no carro e foi embora”, conta. Antes disso, a casa foi arrombada várias vezes. “Reviravam tudo, como se estivessem procurando por algo. Acredito que estavam atrás do contrato de compra e venda do terreno”, diz ela, que não deixa o documento no imóvel desde o dia da primeira invasão, em meados de 2022. >
A região mais próxima à Estrada das Cascalheiras conta com pouquíssimas residências. “Eles oprimem os mais desfavorecidos para fazer esses galpões, isso já é antigo por aqui”, diz um dos filhos da mulher. No entorno do Loteamento Antônio Felix Martins há vários galpões. Outras cinco famílias que também residiam no loteamento tiveram as casas derrubadas. “Ele esperava as pessoas estarem fora para passar o trator. Esses moradores ficaram apavorados porque os caras estavam sempre armados e desistiram. Mas nós não vamos sair. Não é justo a gente dar um duro retado para construir um sonho e vem alguém assim, querendo acabar com tudo. E a gente não tem para onde ir”, conta um dos filhos da mulher. >
Empresário >
A casa está numa região onde, há 15 anos, foi dividida em lotes e vendida por R$ 1.600, cada um, através de um contrato de compra e venda. "Meus pais compraram um lote das mãos de um homem, chamado Roque, que tomava conta de toda a terra. Ele saiu vendendo, achando que o dono nunca apareceria. Ele sumiu”, conta o filho. >
No início de 2022, o empresário passou a ligar para uma mulher, exigindo que a família fosse embora. “Ora dizia que era advogado, ora empresário, mas na maioria das vezes, dizia que era empresário, que era o dono do terreno, querendo que a gente saísse. Todas às vezes que perguntava se ele tinha a escritura ou ordem de despejo, ficava calado ou dizia que queria ver o meu contrato de compra e venda. Como ele nunca mostrou os documentos dele, eu nunca mostrei o meu”, detalha a moradora. >
Em junho do ano passado, a família ficou cara a cara com o empresário, a quem eles acusam de ser o mandante do sequestro e outras intimidações. Além de seguranças, ele chegou com tratores e com a Polícia Militar. “Não tenho dúvida de que foi ele. Ele sempre veio cheio de homens armados, com tratores para derrubar a nossa casa. Só que desta vez ele veio com a polícia”, conta a mulher. >
Para evitar a demolição, a família não saiu do imóvel. “Foi aí que ele coagiu e me fez meu pai assinar uma declaração dizendo que invadiu o terreno dele”, relata o filho. O CORREIO teve acesso ao documento “Acordo Amigável / Reintegração de Posse Consensual”, assinado também pelo empresário. No texto manuscrito, consta que acordo entre as partes foi realizado “aos três diz do ano corrente”, mas a declaração não indica o ano corrente. Ainda no documento, diz que o autor do documento repassou R$ 2 mil para “ajudar na mudança”. “Negativo. Não recebemos nada. Meu pai só assinou porque foi obrigado”, diz o filho. >
Polícia >
A reportagem procurou a delegada Daniele Monteiro, titular da 18ª Delegacia (Camaçari). Segundo ela, o empresário tem a escritura do terreno. “Ele tem escritura pública do local, que pertence ao pai dele, um senhor, que é médico. Como é o enredo da situação: esse senhor tem essa terra há muito tempo e existiu um invasor, um homem, que saiu revendendo, para algumas pessoas, e essa família seria uma dessas pessoas”, declara Monteiro. Segundo ela, a briga pela terra já dura 15 anos. A família rebate. "Não é isso! Ele apareceu coisa de agora, nem nunca ter mostrado nada para a gente! Sempre perguntamos pela escritura, mas sequer enviou foto!", declara um dos filhos da mulher que teve a casa destruída. >
Já sobre o sequestro sofrido pela família, a delegada disse que “a gente está investigando”. “Já ouvimos todos eles e estamos ouvindo as pessoas que eles, inicialmente, apontam como possíveis suspeitos”, diz Monteiro. Em seguida, ela informa que o conteúdo do interrogatório do empresário, que nega as acusações. “Ele diz que não sabe de nada, que não tem conhecimento de nada, que não tem qualquer envolvimento. É a versão dele. Ele alega que já existe uma ação sendo discutida na justiça, já em fase de finalização, e não teria razão para fazer uma coisa dessa natureza”, pontua. >
A delegada disse que o empresário alegou “que não frequenta o local, que foi lá alguma vez, há mais de um ano”, o que vai ao encontro do que já foi relatado acima pela família, que afirma que o empresário esteve no loteamento em junho do ano passado. Monteiro disse que a 18ª DP prestou toda a assistência às vítimas do sequestro. “A gente deu toda atenção do mundo a essa família: todas as investigações foram feitas, eles foram ouvidos”. Mas as vítimas dizem o contrário. “Quando fui fazer este boletim de ocorrência, fui tratada como a ladrona da terra. Só consegui fazer quando a advogada foi comigo”, diz a mulher, uma das vítimas, que apontou proximidade entre o empresário e policiais da 18º DP. >
Ministério Público >
A reportagem procurou o Ministério Público Estadual (MPBA). Em nota, o órgão informou que “instaurou procedimento e está acompanhando as investigações da Polícia Civil sobre o caso”. “Como o procedimento é sigiloso, além disso, informações não podem ser concedidas”, diz a nota. >
A família que luta para não deixar a casa tem uma advogada, que pediu para não ter o nome divulgado. “Neste momento, ainda não vou me pronunciar. Estou no aguardo da perícia técnica e do inquérito para que possa saber a materialidade dos fatos e autoria”, diz, através de mensagem de texto. >
A reportagem vem tentando falar com o empresário por meio de um telefone informado como dele em um documento judicial, mas sem sucesso.>