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Carolina Cerqueira
Publicado em 3 de julho de 2025 às 05:00
Na multidão, uma senhora tentava, a todo custo, abrir caminho. “Eu preciso tocar em você, cabocla!”, gritava. O que ela queria era encostar a mão no carro que levava a cabocla e abria o cortejo do 2 de julho. E conseguiu. “Já encostou? Tem que encostar três vezes”, orientava a voz de um homem no meio do empurra empurra. >
Todo mundo queria se aproximar. Uns para fazer pedidos, outros para agradecer. Alguns ainda diziam que queriam encostar somente para dar sorte. Também teve quem chegasse perto para depositar uma fruta aos pés dos caboclos, como uma oferenda, e quem estava com crianças e fazia os pequenos encostarem nas entidades para serem abençoados. >
João Victor França, de 26 anos, não saiu do pé da cabocla. Emocionado, ele sorria para a figura de madeira coberta de gesso e tinta que, originalmente, representou os povos indígenas e, posteriormente, o povo brasileiro. “Eu venho desde pequeno. Este ano, vim para agradecer”, contou. >
Cláudia Melo, de 58 anos, também cumpre a tradição do 2 de julho desde criança, quando ia para o desfile com a mãe e os irmãos. Para ela, é esta a data que marca o início de um novo ano. “É o dia da liberdade do povo baiano, é dia de devoção”, disse ela enquanto jogava alfazema na cabocla. “Estou agradecendo pelas minhas conquistas do ano que passou e pedindo saúde e paz para o que virá”, completou. >
Admiração >
Quem não tem devoção tem, ao menos, admiração pelas figuras que representam aqueles que lutaram pela independência. Maria Quitéria dos Santos, de 60 anos, estava na porta de casa, entre a Lapinha e a Soledade, esperando o cortejo passar. Ela diz se identificar com a força da xará. “Sou forte como ela. Enfrentei dois cânceres, tenho metade do fígado e ando com uma bolsa de colostomia”, conta ela, que é irmã de uma Joana Angélica e uma Ana Nery. >
Quase ao lado, a Lavanderia Icaray se transformou em camarote da festa nesta quarta-feira. A fachada foi enfeitada com uma placa com um trecho do hino ao 2 de julho, uma bandeira do Brasil com a palavra “amor” no lugar de “ordem e progresso” e desenhos feitos à mão dos heróis da independência, como o General Labatut e Maria Felipa. >
As obras de arte são de autoria dos sobrinhos netos de Sandra, que tem 55 anos e comanda a lavanderia junto com o esposo Gilberto e o cunhado Givaldo. Na saída do cortejo, pouco depois das oito horas da manhã, as crianças ainda não estavam por lá. “Não conseguiram acordar ainda”, disse Sandra, que destacou a importância de contar para os pequenos a história da Bahia e fazê-los admirar as conquistas do povo baiano. >
Trajeto >
Nas portas ou nas janelas de casa, pessoas acompanhavam a passagem dos caboclos de camarote, batendo palmas, tirando fotos e gritando “Viva!” quando eles passavam. No asfalto, quem acompanhava tudo de perto era Rogério Santos e Rafael Oliveira, de 31 anos. Mas eles não tinham tempo de contemplar a festa. >
“Segura! Segura!”, gritavam de lá da frente e Rogério, Rafael e todos os outros homens do Batalhão Quebra-Ferro, que conduzem os carros alegóricos, precisavam obedecer. Eles são responsáveis pela segurança e condução dos carros. E haja paciência para abrir espaço na multidão e braço para segurar o carro na hora de descer as ladeiras. >
Uns gaiatos pelo caminho não ajudavam muito. Quando um dos integrantes do Quebra-Ferro pediu para o grupo “jogar o rabo do carro um pouco para cá”, a resposta automática veio em coro: “Lá ele!”. >
“A gente que vai aqui atrás tem que segurar na descida e quem está lá na frente tem que puxar na subida”, explicou Rogério. Ele e Rafael cumprem a função já há cerca de quatro anos. No dia 2, levam os carros até o Campo Grande e, no dia 5, também são eles que levam os caboclos de volta para a Lapinha. >
Para aguentar a maratona, o segredo é a preparação com muita musculação. No dia, as palavras mágicas são água e feijoada. “Depois daqui eu vou curtir meu feriado, beber minha cervejinha”, anunciou Rogério. Rafael, que não bebe, já foi logo dizendo que ia para casa ficar com a família depois do expediente. >
Representação indígena >
Depois das figuras dos caboclos, o que mais fazia sucesso eram os grupos de povos indígenas. Vestidos com roupas típicas e cantando ao longo do trajeto, eles atraíam olhares e eram focos das câmeras dos celulares pelo Carmo e Pelourinho. Um dos grupos era o Mupoíba, Movimento Unido dos Povos Indígenas da Bahia. Liderado por Agnaldo Pataxó Hã-Hã-Hãe, ele reunia povos de diversas localidades do estado, principalmente da região Sul. >
“O 2 de julho é uma história de participação indígenas e estamos aqui para lembrar isso. Estamos aqui, no nosso lugar, para que a sociedade tenha contato com essa verdadeira história da Bahia e do Brasil”, declarou Agnaldo. >
Outro grupo indígena era o “Os Guaranys”. Com 86 anos de existência em Itaparica, reunia cerca de 40 pessoas no desfile, sob a liderança de Emanuel Pita. “Nossa data mais especial é o 7 de janeiro, mas o 2 de julho também tem grande importância para Itaparica e por isso estamos aqui, para representar Itaparica no cortejo”, disse Emanuel. >
O 7 de janeiro de 1823 marca a Batalha de Itaparica e a celebração da independência na cidade. Um grupo de pescadores, marisqueiras e combatentes locais conseguiu uma emblemática vitória contra os portugueses. Um dos grandes nomes dessa história é o de João das Botas, um português que ali viveu e lutou contra o próprio país. O outro é Maria Felipa, marisqueira e liderança popular da região que em Itaparica teria dado uma surra de urtiga nos portugueses. >
Conexão >
A descendência indígena é o que conecta Val Evangelista, de 45 anos, às figuras dos caboclos. “Eu sinto uma conexão, uma força. Durante o percurso, eu vou aqui coladinha no carro, vou conversando com eles, estabelecendo essa corrente”, disse ela, que saiu antes das seis da manhã de casa para chegar à Lapinha cedo e não perder a oportunidade de desfilar ao lado da cabocla. >
Ela queria que a tradição de ir todo ano ao 2 de julho também fosse passada para as filhas, mas ainda não conseguiu fazê-las acordar cedo no feriado. Quem conseguiu a proeza foi Jaguaracira de Souza, de 55 anos. Ao contrário de Val, que encontrou a cabocla no início do percurso, ela esperava a chegada dos carros na Praça Municipal ao lado da família. >
A conexão dela não vem da descendência indígena, mas da ligação dos caboclos com as religiões de matriz africana. Jaguaracira tem um centro de umbanda e, antes de sair de casa nesta quarta-feira, preparou oferendas para os caboclos com frutas. Quando voltar para casa no final da tarde, será hora do giro para homenageá-los. >
Tudo isso foi contado com lágrimas ainda nos olhos. Quando os carros dos caboclos chegaram, ela se aproximou pelo lado esquerdo. Num mundinho só dela, chorava. “Vim agradecer pela minha saúde. Choro porque é muito amor e muito respeito que tenho por eles”, disse ela. >
A conexão começou quando o filho sofreu um acidente de carro e ficou sem andar. Jaguaracira fez uma promessa de que, se ele ficasse bom, iria todo ano ao 2 de julho. O pedido não foi atendido. O filho se foi. Mas a conexão ficou. “Ele não sobreviveu, mas eu passei a vir, mesmo assim, todo mundo. Ainda tenho muito pelo que agradecer, de qualquer forma”, disse ela. >
Ao mesmo tempo, na frente dos carros, a filha de Jaguaracira levava o filho pequeno, Mateus, para ser abençoado pelos caboclos. Com apenas dois meses de vida, ele participou do seu primeiro 2 de julho. Uma nova conexão nascia. >