A fugaz passagem do lumpesinato pelo paraíso possível

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  • Da Redação

Publicado em 23 de setembro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Ponta sul da praia da Freguesia. Ilha do Governador. Rio de Janeiro. Às margens de pequena enseada, dois homens ocupam o mesmo lugar no espaço. Dia seguinte mimetizam-se com a paisagem na qual coqueiros mambembes, lixo acumulado e cheiro de carniça são deletéria moldura. [Zapt é magro e diligente. Negro e brejeiramente gay nos requebros e maneiras com que pisa na areia fofa e imunda. Zum, branco, tem jeitos mais viris aliados a certa indolência e preguiça].

A dupla improvável se consolidou e se amalgamou a partir da merda generalizada na qual o Brasil se afunda feito pesada bola de chumbo imerge em areia movediça. Simples assim:  dois miseráveis transidos pela miséria. O papel de líder é visível em Zapt. Rápido na construção de fogão tosco para cozinhar peixes podres – ele também transforma palmas de coqueiros em camas cobertas por lençóis puídos e encardidos.

Agosto-setembro 2018. Vejo-os todos os dias nas minhas caminhadas diárias pela orla norte da Ilha do Governador. No começo um lá outro cá. No preparo do almoço tosco fervido em panela achada no lixo – e na qual pedaços de ossos submergem em gordura marrom-ferrugem – é o negro o cozinheiro, o faz-tudo. O branco, visivelmente inadequado ao contexto sórdido na qual começa a se enquadrar passivamente se deixa servir pelo outro.

Aos poucos percebo:  por trás de cortina esfarrapada roída por ratos se configura inesperada história de amor. Passam a dormir mais perto um do outro. Noutro dia não os vejo, apenas escuto. Esgueiram-se por trás de coqueiro mambembe, e Zapt – já identifico de quem é a voz de quem – insiste:  - Dói nadinha.  Deixa, vai. Zum descarta, sem muita convicção: - Sou macho, véi. Zapt vilipendia:  - Em três dias tu ‘vaitá’ aqui na mão.

Uma semana depois avisto-os deitados juntos.  Enterneço-me:  a intimidade é enfim desbravada. Deitados um em frente para o outro, Zapt faz cafuné em Zum e Zum faz cafuné em Zapt. Dizem-se palavras talvez de amor – por que não? [Ao redor o cheiro azedo de carniça grita].

Uma semana depois flagro Zap conversando com mulher que até então não havia entrado em cena, e ela, mulata sestrosa, ajuda a preparar feijoada de feijão preto – trazido pela visitante – misturada aos peixes podres de sempre. Zum não está em cena. Zapt, saltitante, se vangloria:  - ‘Miga’, ‘tamo’ no ‘maió’ love. Hoje cedo, Zum sumiu. Pensei que tivesse fugido. De repente saiu de trás daquela pedra, me agarrou e me cobriu de beijo!

[Zapt e Zum viveram momentos felizes. Na merda, mas felizes. Flores vicejam na merda, pois não?]

O tempo passa. Personagem ex-machina muda a cena no momento em que eu chego perto da pequena enseada. Homem obeso e alto discursa:  - Vocês têm que recuperar a dignidade. Não podem viver feito bichos. Se quiserem, passo aqui à noite e levo vocês para lugar melhor.

[Zapt e Zum se olham desconsertados. Talvez prefiram ficar ali para sempre. Não ficam. Dia seguinte não estão mais lá. O cara balofo os abduziu para a tepidez de algum templo evangélico. Ou os jogou da ponte Rio-Niterói. Quem saberá?]