'A igreja foi saqueada': mais de 200 obras desapareceram de templos baianos

Esquema envolve de falsos restauradores, religiosos a padres, e igreja em Feira de Santana perdeu quase todo o acervo

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 26 de setembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .
Sala onde funcionava museu da Igreja São José das Itapororocas no passado por Acervo/Zorimar Fernandes

No povoado de Maria Quitéria, ninguém sabe dizer onde foi parar a imagem de Cristo Ressuscitado que sempre esteve na Igreja São José das Itapororocas. Muito menos responder onde estão Santa Luzia, Nossa Senhora e São Benedito. O passado sumiu e, aos olhos de todos, o presente ficou mais vazio.

A São José das Itapororocas, localizada no distrito onde a cidade de Feira de Santana começou, é tudo, menos o que foi um dia. Uma a uma, as peças do século 17 desapareceram. Do acervo original, restaram seis peças e as paredes. Na Bahia, são 201 peças históricas desaparecidas, afirma o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e as igrejas são as principais vítimas.

Em Maria Quitéria e outros distritos e cidades, religiosos perguntam como as peças foram roubadas, quando os criminosos agiram e por que atacaram logo objetos sacros. Há igrejas que tiveram seus patrimônios roubados sem existir sequer uma queixa para que se investiguem os sumiços. É o que ocorre, sobretudo, aos templos dos interiores mais afastados de Salvador.

A Igreja São José das Itapororocas é tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), que desconhece a redução patrimonial do espaço a quase nada.

[[galeria]]

Os desaparecimentos de peças de igrejas compõem uma narrativa que envolve de restauradores especializados em extravio de peças, antiquários como os da Rua Ruy Barbosa, na capital baiana, e padres que, por desconhecimento ou ação criminosa, são acusados de vender imagens de santos, pias, castiçais, móveis e adornos. Na Bahia, só três peças foram resgatadas - uma coroa, uma naveta e uma cruz processional, que retornaram para Porto Seguro, no sul do estado. 

Em Maria Quitéria, a viagem das peças foi apenas de ida e frequentadores da Igreja São José das Itapororocas dizem:“A igreja só tem as paredes do passado”.O templo tinha até um museu, no primeiro andar, de tantas peças valiosas que possuía. Depois de uma chuvarada que varreu o povoado, no início dos anos 1990, o museu nunca mais abriu. Nem poderia, pois faltava acervo e o que a igreja hoje possui cabe em um altar. 

O início dos sumiços coincide com a chegada de um novo padre à paróquia, em 1992. Ele é falecido e nenhum inquérito policial foi aberto para apurar o ocorrido. A depender do valor histórico e arquitetônico de uma obra sacra, o preço dela atinge a cifra de milhares ou milhões de reais, o que é um chamariz de criminosos - que às vezes fazem parte da rotina da igreja e rezam para os santos que depois roubam. 

Na Igreja do povoado que leva o nome da heroína da Independência do Brasil na Bahia, três obras chegaram a ser refeitas, numa tentativa de substituir as antigas.“As imagens ficaram tenebrosas e estão no depósito”, conta o pároco da Igreja, Zorimar Fernandes.  A população local, quando fala dos sumiços, transparece tristeza. “A igreja foi saqueada”, opina o padre, que chegou em 2018. Nem as escadas originais do templo sobreviveram - as antigas, mais valiosas, foram trocadas. Desde que iniciou o parocado, Zorimar planeja abrir um memorial para relembrar o que a igreja foi um dia.

Quatro igrejas na mira de criminosos em Salvador Não demorou até que os moradores começassem a estranhar a movimentação de carros, à noite, à porta de Igreja de São José das Itapororocas. "Eles chegavam e saíam com coisas, mas ninguém tinha a malícia de tirar foto e não era tão fácil assim", conta Fátima Casaes, 70, nascida em Maria Quitéria e criada em família católica. O pai, devoto de São José, um dos santos desaparecidos, lamentou até o fim da vida o sumiço do santo. A mãe, que sempre rogava a Nossa Senhora do Carmo, também sofria. Os desaparecimentos foram levados por um nativo ao arcebispado de Feira de Santana, que não deu seguimento à denúncia. 

Em Salvador, uma denúncia feita ao Mosteiro de São Bento também foi arquivada sem que houvesse investigação interna. Há quatro anos, uma restauradora percebeu que dois anjos tinham desaparecido da Igreja Nossa Senhora de Monte Serrat, na Cidade Baixa, enquanto o único restante não parecia mais o mesmo. Quando comparou as novas imagens com fotos antigas, veio a constatação: “O anjo que sobrou tinha sido trocado”. 

O Mosteiro de São Bento, no Largo de São Bento, é onde moram os beneditinos que administram a Igreja de Monte Serrat. Dom Anselmo Rodrigues, diretor cultural do Mosteiro, disse, por telefone, não se lembrar de ter sido avisado dos sumiços.  À esquerda, imagem de um dos anjos substituídos, segundo Observatório do Patrimônio (Foto: Acervo/Observatório) Em Salvador, a reportagem mapeou sumiço de obras nas igrejas da Penha, Nossa Senhora D’Ajuda, Monte Serrat e Catedral Basílica. A principal forma de subtrair bens delas não é por roubos a mão armada. Na verdade, a desconfiança de quem trabalha com patrimônio é que o esquema seja mais discreto, com envolvimento de falsos restauradores e religiosos.

O roubo mais recente a um templo religioso, por exemplo, aconteceu no dia 7 de novembro de 2016, quando bandidos invadiram o Convento da Lapa e levaram cinco peças. A Arquidiocese de Salvador não comentou os casos, mas afirmou que "diante de uma acusação sobre a venda de bens eclesiásticos, a Igreja abre um procedimento canônico interno para investigação", e os casos são acompanhados pelo Tribunal Eclesiástico. A quantidade de investigações não foi informada.

Na Justiça dos homens, ae provado furto ou roubo de patrimônio histórico, a pena varia de quatro a 30 anos, a depender do uso ou não de violência pelos criminosos. 

Em 2018, o Grupo Observatório do Patrimônio, que reúne museólogos e restauradores baianos, enviou uma denúncia ao Iphan sobre um desaparecimento na Catedral Basílica, em Salvador, tombada desde 1938. Estavam “escandalizados”, porque um sacrário de prata, onde se viam diamantes, estava depenado. O caso foi denunciado ao Ministério Público Federal, mas não teve desfecho. 

Para reconhecer se houve troca de peça, da original por uma falsa, museólogos e restauradores costumam se atentar para três fatores: se a iconografia, que reúne elementos como os símbolo e a cor, é a mesma; se  o material da peça é igual ao antigo; e o tamanho. Esse reconhecimento é, claro, uma das dificuldades para afirmar se uma peça foi substituída. Apenas em caso de existir registros fotográficos das peças é possível comparar passado e presente.  

Como o advogado Astério Moreira Neto, 29, é devoto de Santo Antônio, o antigo padroeiro da cidade de Tucano, “foi fácil”, como ele diz, reconhecer que a imagem do santo estava diferente. A desconfiança é que ela tenha sido trocada entre dezembro de 2015 e julho de 2016, depois de uma restauração, em Alagoinhas. A imagem, segundo estudiosos que também analisaram imagens da peça, não é mais a mesma. O santo casamenteiro está mais bochechudo e menor.

Quando olha para imagem do santo na Igreja Matriz de Tucano, construída em 1790, Astério sente vontade de rir, não de orar.“Já não é mais o mesmo, não bate em mim no mesmo lugar”, diz o devoto.A imagem de Nossa Senhora do Rosário também voltou diferente depois do restauro de 2016, mas, depois da comoção local, a original foi devolvida.

Naquela época, Austério foi um dos que pressionaram, a ponto de receber uma visita do então padre. “Ouvi que isso era coisa de excomunhão”. 

Obras vão podem ir parar em apartamentos de colecinadores A Bahia, onde o Brasil começou, carrega para si o título de “mãe cultural do país”, diz o museólogo e professor da Universidade Federal da Bahia, Luiz Freire. Natural, portanto, que as igrejas baianas desfrutem de riquezas arquitetônicas e história secular.“Então, quer dizer, isso também vai gerar um interesse turístico e de colecionadores. Isso se reforçou sobretudo por causa da ancestralidade de Salvador, que é muito importante”, afirma o professor, que integra o grupo Conservatório de Preservação do Patrimônio. Do roubo e dilapidação do patrimônio, surge o que ele chama de “um verdadeiro comércio de fragmentos”. Há dois destinos especulados para as obras que somem das igrejas: antiquários, cujos donos podem comprar obras roubadas deliberadamente ou sem ter conhecimento da procedência, e casas de leilões de obras de arte. Por fim, elas chegam às cômodas de colecionadores.

Um restaurador com mais de três décadas de experiência lembra de ter ido passear na Rua Ruy Barbosa, conhecida como a “rua dos antiquários”, e se deparar com uma mesa secular da Igreja de Nossa Senhora D’Ajuda. O Iphan recuperou o móvel.

Volta e meia, acontece de um restaurador se deparar com uma peça que não deveria ter ido para nas suas mãos. José Dirson é um dos restauradores mais conhecidos e tradicionais de Salvador e, na sua mesa de trabalho, já reconheceu peças roubadas duas vezes. Numa delas, deparou-se com dois anjos da Igreja da Penha, deixados no seu ateliê por um jovem. Os anjos tinham sido vendidos a um empresário, conhecido de Dirson, que acionou a ele e ao Iphan.“Trocando em miúdos, o padre tinha vendido a um cara, que vendeu a um antiquário, que vendeu ao empresário”, recorda. Como não ficam em espaços fechados, as peças estão naturalmente mais expostas. E, depois de roubadas, inicia-se um périplo de policiais federais ao redor do Brasil e de órgãos congêneres pelo mundo. Uma das dificuldades de encontrá-las é o fato de que “elas rapidamente ficam fora do circuito, dentro da casa de colecionadores por exemplo”, explica Tiago Sena, delegado da Delegacia de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico.“Estamos falando de objetos de valor inestimável, mas que não têm uma estrutura de segurança compatível, nem poderia ter. Não se pode trancar certas coisas”, justifica. Quando um bem desaparece, ele pode estar em qualquer parte do mundo. Em junho, Tiago vibrou ao receber a notícia de que uma peça pré-colombiana, desaparecida no Peru, foi encontrada no Rio de Janeiro, o que prova o cosmopolitismo dos criminosos. Na Bahia, no entanto, as demandas relativas a roubo de patrimônio correspondem a só 5% do empenho diário dos policiais, por falta de denúncias.“Temos uma equipe compatível com o trabalho, mas muita coisa não chega. Para mim foi uma surpresa saber de tantos bens desaparecidos”, conta.  Era década de 1970, quando o arqueólogo Valentim Calderón, documentador da maior parte das obras do Museu de Arte Sacra da Bahia, já defendida que “40% do patrimônio baiano estava desaparecido”. Ele não deixou previsões, mas a história mostra que a porcentagem deve ter crescido e o presente ficado ainda mais carente de passado.