A música como refúgio: pianistas e cantoras ucranianas chegam a Salvador fugindo da guerra

Dez jovens, refugiados da guerra contra a Rússia, são esperados para viver em Salvador e ensinar música a crianças e adolescentes baianos

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  • Da Redação

Publicado em 9 de abril de 2022 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Olesia Matei está na Bahia pela primeira vez. Aliás, no Brasil, país sobre o qual sabia muito pouco - sabia sobre nossa fama no futebol, sobre o calor e as novelas, principalmente 'Escrava Isaura' e 'O Clone'. No dia 24 de março, a musicista de 27 anos desembarcou em São Paulo e veio direto para Salvador. Por aqui, se deliciou com uma moqueca no restaurante escola do Senac Pelourinho e bateu perna pelo bairro do Santo Antônio Além do Carmo, onde visitou o Forte da Capoeira. Lá, inclinou-se diante do poço localizado no pátio e, aproveitando a acústica perfeita, soltou a voz, numa belíssima interpretação do clássico Ave Maria. 

Cantou como quem reza pelos seus. Ela sabe que a música tem poder e, nesse caso, é capaz de salvar vidas. Apesar do percurso turístico, Olesia não veio pra cá a passeio, mas fugindo da guerra na Ucrânia. Ela está entre os dez jovens refugiados que vão, aos poucos, sendo acolhidos pelo Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia), programa do Governo da Bahia, gerido pelo Instituto de Desenvolvimento Social pela Música (IDSM). A instituição está recebendo músicos ucranianos no estado, onde poderão participar das suas atividades musicais.

No dia 1º de abril, Vladyslava Danyliuk, de 20 anos, se juntou a Olesia. As duas são cantoras líricas e pianistas. Não se conheciam e poderiam até se encontrar em algum momento, por conta das apresentações que realizam, mas é irônico que o encontro tenha sido a milhares de quilômetros do seu país de origem (a distância entre Ucrânia e Brasil é de 11 mil quilômetros), em um momento trágico. Olesia mora(va) em Kiev e Vlada, como é chamada, em Odessa. Levavam suas vidas como qualquer jovem ao redor do mundo: trabalho, ensaios, apresentações, reuniões familiares, festinhas com os amigos... A partir do dia 24 de fevereiro, no entanto, tudo mudou. A normalidade deu lugar à apreensão e ao medo. Foi quando o exército russo, sob o comando do presidente Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia, dando início a uma guerra que já dura 45 dias.  Vlada (cabelo loiro) com amigos, na Ucrânia, antes de deixar o país (Foto: Acervo pessoal) Antes de saberem do programa de acolhimento do Neojiba, as jovens buscaram alternativas de sobrevivência na Ucrânia. Voltaram para as casas das famílias, no interior do país, onde a população, por ora, segundo elas, encontra alguma segurança. Em Berehovo, região oeste da Ucrânia, Olesia deixou a mãe e a avó, e instalou um aplicativo no celular, que avisa quando tocam as sirenes que informam sobre ataques a bombas na cidade. “Até agora, está tudo bem, graças a Deus”. 

Em Pobuzke, ao sul do país, Vlada deixou o pai, a mãe, primos, tios e o irmão, de 17 anos. Como tantas outras famílias resistentes a saírem da Ucrânia, os pais de Vlada garantem que não arredam o pé de Pobuzke, mesmo que a cidade seja bombardeada. “Caso isso aconteça, eles pretendem mandar meu irmão para a Guatemala, onde tem até emprego garantido”. A situação do rapaz, no entanto, a preocupa: “Se a guerra durar muito e ele completar 18 anos, infelizmente, terá que se alistar ao Exército e ir para o campo de batalha”, destaca, em referência à lei criada pelo governo ucraniano, que obriga homens entre 18 e 60 anos, salvo algumas exceções, a permanecerem na Ucrânia para servir ao país durante os conflitos. 

O presidente Volodymyr Zelensky, 44, é um herói para as duas ucranianas.“Eu e minha família apoiamos Zelensky desde as eleições, porque foi um presidente que veio do povo e que está junto com o povo”, afirma Vlada.Já Olesia não apoiou a candidatura do ex-ator e comediante, mas hoje em dia acredita em sua força.“Ele não fugiu, o que já é um ato heroico, a meu ver. E está tentando melhorar o país desde o começo de seu governo”, comenta Olesia. Para além da violência, alguns dos problemas que os ucranianos enfrentam no dia a dia são a escassez de comida e água. A falta de agilidade nos serviços dos correios locais e no funcionamento das instituições públicas também dificultam a vida de quem quer deixar o país. Antes de chegar ao Brasil, as meninas presenciaram o primeiro mês da guerra, com todos os perigos que envolvem um conflito dessa proporção. Felizmente, não se feriram e nem perderam ninguém. Agora, elas esperam outros músicos ucranianos para lhes fazerem companhia em Salvador. A previsão é de que, nos próximos dias, desembarquem na capital baiana uma jovem de 16 anos e um rapaz de 18. A primeira já está a caminho, mas o segundo luta, justamente, contra a burocracia militar em seu país. 

Iemanjá e Santo Antônio Se Olesia e Vlada pouco sabiam sobre o Brasil, da Bahia nunca tinham ouvido falar. Mas, ao que parece, estão se adaptando bem. O clima quente não tem incomodado. “Na Ucrânia, a gente usa aquecedor no nível máximo em casa, justamente para não passar frio. Então, não é tão difícil”, garantem. Como deixaram o país de origem com roupas de inverno, acabaram recebendo peças doadas, mais adequadas ao nosso outono.  Olesia durante passeio no Pelourinho (Foto: Acervo pessoal) Enquanto responde as perguntas da entrevista, Olesia vai tecendo trancinhas nos cabelos pretos e longos, com o intuito de deixá-los mais volumosos. Ela bem poderia se passar por uma menina baiana. Encanto, tem. Um santo também. Católica praticante, a cantora lírica, além de Nossa Senhora, é devota de Santo Antônio, a quem recorre quando precisa encontrar coisas perdidas. Aqui, explico que invocamos o santo para pedir por namorado ou marido. “Achei que era Iemanjá quem trazia marido”, ri, e ressalta que achou muito bonita a diversidade religiosa baiana.  Olesia posa com a bandeira da Ucrânia no Santo Antônio, com a Baía de Todos os Santos ao fundo (Foto: Acervo pessoal) Morando em um imóvel no bairro do Rio Vermelho (cedido pelo Neojiba), próximo à Casa de Iemanjá, a cantora ainda não teve tempo de entrar no templo sagrado da Rainha do Mar, mas avisa que fará isso em breve. “Por enquanto, fico olhando para o mar, na esperança de ver a sereia”. 

Já a amiga Vlada olha para cima, para as árvores, na expectativa de cair uma manga de uma mangueira ou de ver micos pulando entre os galhos. “Ainda não vi nenhum!”, fala, um tanto decepcionada. Apaixonada pela natureza, a moça confessa que conhecer a Amazônia está em seus planos, mas, ainda é só um sonho, como é também o fim da guerra em seu país. 

Rolê e concertos  Os dias têm sido corridos. As musicistas se dividem entre uma maratona de entrevistas para veículos de comunicação; deslocamentos para a sede do Neojiba, no bairro da Liberdade, onde Olesia dá aula de canto para crianças e Vlada ensaia; coisas do dia a dia, como ir ao supermercado, e entender a dinâmica da cidade. Para isso, elas contam com a ajuda da bielorrussa Volha Yermalayeva Franco, 33, que mora em Salvador há 10 anos.

Nascida em Belarus, país fronteiriço à Ucrânia e à Rússia, ela é casada com um baiano e veio para a Bahia depois de ler ‘Mar Morto’, de Jorge Amado. “Fiquei encantada com aquele universo”. Foi a tradutora quem fez Olesia acreditar que a Rainha do Mar era responsável por unir casais: “Eu disse a ela que pedi meu marido para Iemanjá”, brinca, com um sotaque que mistura português, ‘erres’ carregados e baianês.  Volha (centro) levou Olesia e Vlada para conhecer um pouco da história da Bahia, no Pavilhão ao 2 de Julho, na Lapinha (Foto: Acervo pessoal) Volha ensina o nosso idioma e traduz as entrevistas para as ucranianas. Por estarem há tão pouco tempo no Brasil, o português ainda é um problema, mas as duas conseguem se comunicar através de gestos e do Google Tradutor. Olesia já aprendeu expressões básicas como “Bom dia, boa tarde, boa noite, olá, tudo bem?”, além de “Inspira e respira”, para as aulas de canto com as crianças. “Elas são fofas, sorridentes, muito interessadas e talentosas”, suspira. As ucranianas com a belarussa e tradutora, Volha, na sede do Neojiba (Foto: Marina Silva/CORREIO) ‘Bóra’ é uma das palavras que não podiam faltar no dicionário impresso desenvolvido pela professora Volha, que também é guia pelas ruas da cidade. Ela levou as musicistas para fazerem o percurso dos festejos do Dois de Julho, em um passeio histórico-cultural. Nesses rolês cabem também ativismo político. A tradutora é uma das responsáveis por organizar os protestos contra a guerra na Ucrânia, que têm ocorrido aos domingos no Farol da Barra. Olesia e Vlada, claro, participam das manifestações, junto a outros apoiadores.  Ativista protesta contra a invasão da Ucrânia em ato no Farol da Barra, no domingo passado (Foto: Carolina Cerqueira/Arquivo CORREIO) Além dos gritos de “Parem a guerra” e dos instrumentos tocados pelos jovens do Neojiba, as ucranianas estão atentas também aos sons locais. Olesia conhecia o trabalho dos compositores brasileiros Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Carlos Gomes (1836-1896), mas agora está encantada com os ritmos percussivos. “Já ouvi muito batuque no Farol da Barra, nos dias das manifestações, e gostei muito. É viciante! Em breve, espero conhecer mais”. 

O som que mais chamou atenção de Vlada vem de outros cantos: das casas, bares e carros que passam pelo Rio Vermelho. “Em poucos dias, já ouvi muita música brasileira. Achei estranho no começo, mas me acostumei. Agora até consigo dormir”. 

Sem previsão de retorno para casa, elas agradecem o acolhimento do Neojiba e dos soteropolitanos: “Até agora não passei por nenhuma experiência negativa. Todo mundo tenta ajudar, mesmo as pessoas desconhecidas, que me dizem para não andar na rua com o celular na mão. Aqui, todo mundo cuida de mim”, diz Olesia. "Em retribuição, espero poder mostrar um pouco da cultura ucraniana, através da música. Para nós, música é força, é nosso espírito".

O público soteropolitano pode conferir essa força e o resultado da integração social Bahia-Ucrânia aos domingos, no Neojiba, que fica no Parque do Queimado, bairro da Liberdade. Lá, sempre às 11 horas, têm sido realizados concertos gratuitos. Também estão previstas apresentações no dia 15 de maio, em uma Igreja de Salvador, com todos os musicistas ucranianos que tiverem chegado até a data, e 1º de junho, no Teatro Castro Alves, tendo Olesia como solista, junto à Orquestra Juvenil da Bahia.

Solidariedade baiana O Brasil é, historicamente, um país que recebe refugiados de guerra e imigrantes. No século XX, vieram para cá dezenas de milhares de europeus, fugindo da Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, de 2010 a 2015, chegaram ao país 72 mil refugiados haitianos e 3,8 mil sírios, vítimas de conflitos em seus países. Os dados são da Polícia Federal. De acordo com o Governo Federal, 287 mil refugiados e migrantes venezuelanos foram regularizados até 2021 pela Operação Acolhida. Atualmente, o Brasil tem recebido refugiados da guerra da Ucrânia, que foi invadida pela Rússia em 24 de fevereiro deste ano. Até agora, 995 pessoas já buscaram abrigo no país. Deste total, nove foram registrados na Bahia: sete em Salvador, e dois em Ilhéus, segundo informações da PF-BA. 

Os refugiados são recebidos de acordo com a Lei de Migração, de 2017, que garante a igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante, além de inclusão social, laboral e produtiva através de políticas públicas. Mesmo com uma legislação bastante avançada, a realidade de quem chega ao país na condição de refugiado ou imigrante é bem difícil. Eles encontram barreiras para conseguir moradia, emprego, revalidar diplomas, etc. 

Os contemplados com a iniciativa do Neojiba poderão morar e participar das atividades do programa por um período de seis meses, prorrogáveis por comum acordo entre as partes. Serão 10 jovens ucranianos, no total, contando com Olesia Matei e  Vladyslava Danyliuk. Eles recebem o visto humanitário (válido por até dois anos), que é concedido a pessoas advindas de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, calamidade de grande proporção, desastre ambiental ou grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário. O Instituto de Desenvolvimento Social pela Música (IDSM) se responsabiliza pela emissão dos vistos e pelas despesas dos jovens, como deslocamento da viagem, hospedagem, refeições, ajuda de custo, além de oferecer apoio social e psicológico, com recursos de doadores. As inscrições permanecem abertas pelo email [email protected]

De acordo com o maestro Ricardo Castro, que comanda o Neojiba, a iniciativa é, na verdade, um programa de intercâmbio cultural: “Decidimos promover essa ação porque ela se insere naquilo que fazemos, que é a integração social por meio da prática musical coletiva e de excelência”. Os fundos para o funcionamento do programa foram arrecadados no exterior, através da mobilização do maestro, que mora entre a Suíça e Salvador. “Com o recurso, o IDSM consegue cobrir todos os custos da estadia em Salvador. Essas musicistas se inserem em nosso programa com aquilo que sabem fazer, que é música com excelência e essa integração é muito benéfica para ambas as partes”, ressalta ele. 

A ação do Neojiba configura a primeira oficial na Bahia, no sentido de acolher vítimas de guerras, segundo o professor  e historiador Jaime Nascimento. “Nos outros conflitos, acontecia o contrário. Na Segunda Grande Guerra, nós enviamos soldados baianos, nossos pracinhas”, explica. Para ele, independente de ações oficiais, no geral, o povo baiano é solidário: “Temos como exemplos recentes o período da pandemia, as últimas chuvas no sul do estado, bem como em Petrópolis, no Rio, o terremoto do Haiti, em 2011, a explosão da barragem de Brumadinho, em Minas… Estamos sempre ajudando, com doações, com envios de voluntários… A Bahia sempre se mobiliza para ajudar, de alguma forma”.